Título: A lei do microsseguro
Autor: Gonzalez , Lauro
Fonte: Valor Econômico, 06/05/2010, Opinião, p. A14

O Brasil dispõe de um sistema financeiro razoavelmente desenvolvido mas ainda limitado no que diz respeito a serviços para a população mais pobre, em particular no ramo de seguros. A esse respeito, tramita atualmente no Congresso o projeto de "lei do microsseguro" e a expectativa é que haja aprovação ainda no primeiro semestre deste ano. A Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) vem liderando as discussões no âmbito da Comissão Consultiva de Microsseguros, criada em 2008 e contando com a participação de diversas entidades ligadas direta ou indiretamente ao setor.

De acordo com informações divulgadas na mídia, "o texto do projeto de lei aproveita 75% das recomendações da comissão". Baseado no histórico recente dos marcos legais das microfinanças no Brasil, os 25% restantes preocupam e trazem de volta o fantasma de projetos de lei tão cheios de boa intenção quanto desconectados da realidade de mercado. O erro fundamental a ser evitado é a produção de um arcabouço legal que atue negativamente sobre a estrutura de incentivos das empresas, engessando as práticas e impedindo a disseminação da inovação, sobretudo no que diz respeito a novos modelos de negócio. Rigidez excessiva no tocante a tipos de produto, prêmios cobrados, níveis de cobertura e definição de público-alvo deve ser evitada

Revisitar a evolução recente dos marcos legais relativos ao microcrédito possibilita extrair lições importantes sobre os perigos de um marco legal inadequado. A Lei 10.735, de 11 de setembro de 2003, estabeleceu que parcela de 2% dos depósitos à vista dos bancos comerciais, bancos múltiplos com carteira comercial e da Caixa Econômica Federal deveriam ser destinados para o microcrédito. Caso optassem por não aplicar os recursos, os bancos deveriam depositar os referidos montantes em uma conta especialmente criada, na qual não haveria qualquer tipo de remuneração. Além disso, as taxas de juros máximas foram fixadas em 2% ao mês.

Contudo, a fixação desse teto máximo para os juros estava totalmente desconectada da realidade das instituições operadoras de microcrédito, sobretudo as OSCIPs. O desconhecimento sobre a composição de custos e do funcionamento do microcrédito produtivo na prática levou o legislador a cometer um equívoco que inviabilizava as boas intenções da lei. A taxa de 2% cobrada do cliente final não permitia atingir sequer o ponto de equilíbrio operacional, dado o elevado custo de se manter um agente de crédito próximo ao cliente, alocando considerável quantidade de tempo para realizar operações de pequena monta.

Naquele instante, o próprio BNDES atrelou a liberação de funding aos mesmos 2% mensais para o tomador final, inviabilizando a captação de recursos por parte das OSCIPs. Somente em novembro de 2004, após reclamações generalizadas e muitas negociações, o Governo Federal editou nova Medida Provisória alterando o teto de juros para 4% mensais para as operações de Microcrédito Produtivo Orientado, tendo inclusive criado um programa específico para essa modalidade de operações (PNMPO).

Não obstante serem vários os fatores relacionados ao racionamento de crédito, é cabível indagar quantos microempreendedores acabaram ficando sem crédito durante o período de fixação de taxas artificialmente baixas. Apesar da alteração - de 2% para 4% - ter promovido uma maior sintonia com a estrutura de custos vigente no setor, os resultados até aqui obtidos levantam sérias dúvidas sobre a própria lógica de fixação, por meio de legislação, de um teto de juros. A tabela mostra a evolução do saldo da exigibilidade e a porcentagem desse saldo efetivamente aplicada no microcrédito. Como se observa, não há aumento significativo nos valores aplicados.

O microsseguro é fundamental para o avanço das microfinanças e para construção de um sistema financeiro inclusivo. Dentro da lógica de viabilizar "acesso" e "uso" de serviços financeiros como forma de combate à pobreza e inclusão, o microsseguro e o microcrédito são bastante complementares. Essencialmente, o microcrédito visa possibilitar um processo de acumulação de ativos e geração de renda. Já o microsseguro permite preservar ou proteger os ativos acumulados diante da ocorrência de eventos adversos, tais como morte, acidentes, catástrofes naturais etc.

Não é difícil imaginar que na economia informal prevaleçam negócios de reduzida escala e investimentos não suficientemente diversificados, ou seja, choques exógenos têm efeitos negativos relativamente mais elevados sobre o bem-estar dos pobres. Em estudo recente*, apontamos inúmeras sinergias entre o microcrédito e o microssseguro. Além disso, estimamos um impacto positivo de cerca de 33% nos investimentos dos microempreendedores informais que têm acesso a seguro.

* Sinergia entre Microsseguros e Microcrédito e Crescimento dos Mercados. Lauro Gonzalez é professor da EAESP-FGV e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças da FGV.