Título: Nó da infraestrutura põe em risco expansão acelerada, diz Lisboa
Autor: Lamucci , Sergio
Fonte: Valor Econômico, 11/05/2010, Especial, p. A14
Entusiasta das reformas microeconômicas como arma para aumentar o crescimento potencial do país, o economista Marcos Lisboa diz que o Brasil precisa enfrentar com urgência os obstáculos que atrapalham o investimento em infraestrutura. O seu receio é que, na ausência de reformas institucionais que ataquem esse problema, haja uma queda "desnecessária" da taxa de expansão da economia nos próximos anos. "O Brasil já teve um dos menores custos de energia do mundo e hoje perdemos negócios para outros países pela elevação do custo energético. Nosso crescimento requer expansão da malha logística e acesso à energia", afirma Lisboa, que ocupou a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda entre 2003 e 2005, quando foi o principal formulador das reformas implementada no começo do governo Lula.
"O país tem um grande desafio em acertar a governança sobre decisões de investimento, seus impactos sociais e ambientais", diz ele. Por conta da "falta de definição de atribuições institucionais", o país investe menos e cuida menos do ambiente do que poderia. Nesse quadro, ocorre a paralisia, o que leva "a decisões socialmente ineficientes, como o investimento em térmicas a diesel, que são muito piores para o ambiente".
Segundo Lisboa, um problema grave é que a legislação brasileira em muitos casos não define claramente quem pode conceder licenças para investimento. "Como não está definido, todos os poderes públicos acabam sendo necessários para a autorização. Isso significa que qualquer decisão requer, virtualmente, unanimidade: todos tem que estar de acordo, caso contrário as liminares, ações criminais e processos se sucedem numa sequência sem fim." Por medo de ações criminais, muitas decisões são simplesmente engavetadas. Nesse cenário, seria fundamental apostar em reformas que resolvam esses problemas estruturais.
Hoje vice-presidente responsável pelas áreas de risco operacional e eficiência do Itaú Unibanco, Lisboa faz questão de dizer que não fala de grandes reformas. Para ele, há um espaço significativo para avançar em "pontos aparentemente pouco importantes", mas que, somados, podem ter um impacto expressivo sobre a taxa de expansão da economia e sobre a eficácia da política social.
Para Lisboa, o Brasil tem melhorado a sua taxa de crescimento potencial "precisamente" pela realização de diversas reformas. "Algumas poucas grandes, como a estabilidade e a responsabilidade fiscal, mas também por diversas pequenas reformas: novos instrumentos de crédito, ajustes no código de processo, legislação de falências, entre muitas outras."
O economista diz ver motivos para otimismo em relação ao Brasil, observando que o país vive uma "fase inédita nas últimas décadas", mesmo num quadro em que há graves dificuldades em outros cantos do mundo. Uma eventual piora da situação na Europa, porém, pode afetar o país, adverte ele. A seguir, os principais trechos da sua entrevista, concedida por e-mail.
Valor: O Brasil deve crescer entre 6% e 7% neste ano, com alta expressiva do consumo das famílias e do investimento, num cenário de quase euforia dos investidores estrangeiros em relação ao Brasil. Há motivos para esse otimismo?
Marcos Lisboa: Há certamente boas razões para otimismo com nossa economia. São muitos anos de estabilidade macroeconômica combinada com progressivas melhorias institucionais, como a lei de responsabilidade fiscal, as reformas nos instrumentos de crédito e o maior foco das políticas sociais, para citar apenas alguns exemplos. Nosso crescimento recente tem sido puxado, sobretudo, pela expansão do crédito e do consumo, que por sua vez tem estimulado o investimento. Vivemos uma fase inédita nas últimas décadas e isso em um momento de graves dificuldades em outros países. Além disso, nosso comércio externo é em boa medida complementar às economias asiáticas, sobretudo a chinesa, que sofreram bem menos com a crise externa e continuam a crescer a taxas elevadas. Na medida em que não haja um agravamento da crise na Europa, que passa por um momento extremamente conturbado, as perspectivas para nossa economia são bastante favoráveis. O difícil momento na Europa, porém, pode gerar bastante instabilidade nos próximos meses, o que nos afetaria.
Valor: O crescimento mais forte deve causar um aumento significativo do déficit em conta corrente. Essa trajetória é preocupante ou o Brasil pode conviver com déficits crescentes nos próximos anos?
Lisboa: Eu estaria mais confortável com um crescimento mais moderado do déficit. É natural para uma economia com taxas elevadas de crescimento e nesse estágio de desenvolvimento apresentar déficit externo, mas o nosso vem crescendo a taxas fortes, fragilizando alguns setores. A forma mais eficaz de reduzir o déficit externo de forma sustentável é aumentar a poupança pública, o que teria a vantagem adicional de ampliar os recursos para o investimento público. Esse é um ponto de preocupação a médio prazo, pois nossa tendência recente tem sido exatamente a oposta: baixa poupança pública e baixo investimento público, o que significa um déficit em transações correntes crescente. Houve alguma melhora recentemente no que se refere ao investimento, mas ainda temos um nível insuficiente para lidar com os grandes desafios em infraestrutura que devem ser superados para viabilizar a manutenção de altas taxas de crescimento. Além disso, aumento da poupança pública significa reduzir a pressão sobre as contas externas, garantindo melhores condições para os setores domésticos, o que auxilia a produção e investimento do setor privado.
Valor: Depois de aprovar algumas reformas no primeiro mandato, o governo perdeu o ímpeto reformista. Quais reformas deveriam ser retomadas com urgência?
Lisboa: Acho que o país tem um grande desafio em acertar a governança sobre decisões de investimento, seus impactos sociais e ambientais. Em muitos casos, nossa legislação não define com clareza quem pode conceder licenças para investimento, e sobre quais parâmetros. Por exemplo: quem define uma autorização para investimentos em bacias hidrográficas? Como não está definido, todos os poderes públicos acabam sendo necessários para a autorização. Em outros países, a jurisprudência define claramente qual o mandato do administrador público. Decisões nesse mandato são aceitas como dentro do mandato democrático, não sendo questionadas, muito menos criminalmente. Aqui, os mandatos para os administradores públicos não estão bem definidos. Isso significa que qualquer decisão requer, virtualmente, unanimidade: todos tem que estar de acordo, caso contrário as liminares, ações criminais e processos se sucedem numa sequência sem fim. Pior, com receio das ações criminais, as decisões nem mesmo são tomadas, são simplesmente engavetadas. Se unanimidade fosse requerida para tomar decisões, nem condomínio de prédio conseguiria funcionar adequadamente. Num certo sentido, esse é um problema bom. O país tinha poucos controles no passado, o que mudou para melhor desde 1988. O ministério público, os Procons e o Ministério da Justiça são responsáveis por melhorias importantes na defesa do consumidor e na profunda alteração nas práticas usuais das empresas e bancos. Isso é uma conquista do país. De forma análoga, diversas minorias passaram a ser bem mais protegidas graças à ação do MP.
Valor: O que falta fazer?
Lisboa: Delimitar com precisão o que está na alçada do executivo público, decidir e estabelecer com maior precisão o papel das áreas de controle e com poder de interromper os investimentos. A necessidade da unanimidade pode se revelar muito ruim para o país. Decisões importantes sobre matriz energética e logística, por exemplo, acabam não sendo tomadas, ou sendo tomadas de forma negativas para o crescimento, o ambiente e a população. Um exemplo é a dificuldade de construir hidrelétricas, que produzem energia limpa, e que tem levado a expansão da energia com base em óleo diesel. Muitas vezes, não há decisão que agrade a todos e a não decisão pode ser a pior saída.
Valor: O sr. foi um dos coordenadores da Agenda Perdida [conjunto de propostas de reformas microeconômicas para acelerar o crescimento e melhorar a distribuição de renda], em 2002. Depois de oito anos, quais pontos continuam atuais e deveriam ser tratados como prioridade pelo próximo governo?
Lisboa: A agenda não tem um mérito em si, pois apenas buscou consolidar um conjunto de reformas institucionais já apontadas por diversos pesquisadores e gestores que poderiam melhorar o funcionamento tanto dos mercados quanto da gestão pública, como a focalização das politicas sociais. Talvez a única contribuição da agenda tenha sido propor que, uma vez conquistada a estabilidade macroeconômica, nosso maior desafio para ampliar o crescimento econômico e a justiça social fosse dar foco a essa agenda de pequenas e contínuas reformas institucionais que melhoram tanto a gestão pública quanto os mercados. Apesar de cada reforma em si parecer pequena, em conjunto significa implica grandes mudanças e requer muitos anos para ser implantada. Em geral, os países que se desenvolveram na segunda metade do século vinte passaram mais de uma década com uma agenda contínua de reformas dessa natureza: lei de falências, estímulos a poupança privada de longo prazo, acertos no código de processos e execução de dívidas, aperfeiçoamento dos instrumentos de crédito e securitização, de gestão do setor público etc. Não acho que os desafios de crescimento de longo prazo sejam resolvidos com as bandeiras usuais, mais Estado ou mais setor privado. Em alguns casos, tanto Estado quanto setor privado podem funcionar, desde que com as regras do jogo e os incentivos adequados. Em muitos, o setor privado é mais eficiente. E em outros, ainda, é preciso combinar os dois: uma boa e sofisticada regulação pública com empresas privadas. A meu ver, esses são nossos desafios: melhores regras do jogo, melhores desenhos institucionais e melhor regulação que leve a maior eficiência do setor privado, a melhor gestão dos recursos públicos e a políticas públicas mais eficazes.
Valor: Dê um exemplo em que uma dessas reformas produziu uma melhora clara na economia.
Lisboa: Um exemplo é a nova lei de falências. O número de empresas que pedem falência ou concordata caiu a menos de 20% do que era antes da nova lei. Desestimulou-se o uso inadequado do instrumento e as empresas em dificuldades hoje conseguem reestruturar suas dívidas, ao contrário do passado, quando as empresas eram simplesmente fechadas. E, como menos empresas fazem o uso inadequado do instrumento, o crédito para as boas empresas aumentou significativamente nos últimos anos, inclusive para médias e pequenas empresas, muitas das quais não tinham acesso até poucos anos atrás. Com isso, essas empresas podem produzir mais e gerar mais emprego e renda.
Valor: A economia brasileira saiu de um ritmo de crescimento pouco superior a 2% ao ano entre 1980 e 2003 para quase 5% entre 2004 e 2008, mesmo sem a aprovação de muitas reformas. Como convencer um governo a promovê-las, sendo que muitas são politicamente desgastantes, se o crescimento mudou de patamar mesmo sem elas?
Lisboa: Não falo das grandes reformas, muitas vezes polêmicas. Não sei se a sociedade as deseja ou mesmo se essas reformas entregam tudo o que prometem. A meu ver, há muito o que fazer sobre pontos aparentemente pouco importantes, os quais, no entanto, em conjunto, podem ter um impacto significativo sobre nossa taxa de crescimento ou a eficácia da política social. Como disse antes, acho que o país tem melhorado sua taxa de crescimento potencial precisamente pela realização de diversas reformas, algumas poucas grandes como a estabilidade e a responsabilidade fiscal, mas também por diversas pequenas reformas: novos instrumentos de crédito, ajustes no código de processo, legislação de falências, entre muitas outras. Nosso crescimento nos últimos cinco anos foi puxado precisamente pela expansão do consumo, sobretudo o financiado. Foi notável o impacto do financiamento do automóvel e, mais recentemente, da casa própria no crescimento do consumo e da renda, que tem estimulado o investimento, a produção e o emprego. Ou ainda, o impacto do crédito consignado na expansão do consumo dos trabalhadores, com seu efeito multiplicador sobre a renda e a geração de emprego.
Valor: Qual o risco se o Brasil não implementar esse tipo de reforma?
Lisboa: Meu receio é que, na ausência de reformas institucionais semelhantes que resolvam as dificuldades com investimento em infraestrutura, tenhamos uma queda da taxa de crescimento desnecessária nos próximos anos. O Brasil já teve um dos menores custos de energia do mundo e hoje perdemos negócios para outros países pela elevação do custo energético. Nosso crescimento requer expansão da malha logística e acesso à energia. Claro que esse processo tem que balancear os impactos no meio ambiente e nas minorias. O problema, a meu ver, é que por uma falta de definição de atribuições institucionais, estamos em uma situação ruim: investimos menos e cuidamos menos do ambiente do que poderíamos. Simplesmente, ocorre a paralisia, o não fazer, o que acaba levando a decisões socialmente ineficientes, como o investimento em térmicas a diesel, que são muito piores para o ambiente. É preciso organizar a institucionalidade, quais os mecanismos adequados e democráticos para a decisão de investimento e que leve em consideração os custos e benefícios sociais das diversas opções. Isso é fundamental para conseguirmos a decisão mais equilibrada para nosso futuro.
Valor: Desde a crise, o governo adotou uma política de crédito bastante ativa, com capitalizações expressivas do BNDES e uma atuação agressiva dos outros bancos públicos. Essa política de crédito faz sentido um ano e meio depois da quebra do Lehman Brothers?
Lisboa: O Brasil, como alguns países, tomou medidas ousadas em um momento de grave crise internacional, que permitiram a rápida superação do grave quarto trimestre de 2008. Há uma preocupação de todos com nosso baixo nível de investimento e um debate importante sobre como auxiliar a expansão do financiamento de longo prazo no nosso país. Porém, enfatizo, acho que nossa restrição mais urgente a ser superada é a capacidade da sociedade avaliar projetos em infraestrutura e conseguir realizá-los com eficiência tanto econômica quanto social e ambiental.
Valor: Depois da crise, ganhou força no governo a defesa do Estado forte. De que tipo de Estado o Brasil precisa para crescer a taxas mais elevadas, de modo sustentado?
Lisboa: Na minha opinião, às vezes imagina-se um conflito de ideias muito maior do que o que efetivamente ocorre. São discussões importantes e sem respostas fáceis, porém sobre pontos muito específicos. O desenho regulatório de alguns setores com fortes barreiras à entrada é difícil no mundo inteiro e o Estado tem que definir regras específicas para garantir o uso mais eficiente dos recursos. Existem divergências sobre alguns aspectos do projeto sobre pré-sal, por exemplo, mas não vejo nenhum grande debate sobre profundas reformas na economia. Não vejo grupos expressivos defendendo uma reestatização radical da nossa economia, controle generalizado de preços, ou privatização das empresas estatais. Aparentemente, a grande maioria da sociedade não espera e nem pede profundas mudanças nessas questões. Há apenas discussões pontuais. Ninguém defende, por exemplo, voltar aos anos 80 onde até o preço do seguro de vida era tabelado, não se podia importar quase nada e quase toda infraestrutura era estatal, do telefone às estradas, passando por boa parte da exploração mineral.
Valor: O sr. vê riscos de que o próximo governo faça mudanças no tripé formado pelo câmbio flutuante, regime de metas de inflação e superávits primários elevados?
Lisboa: Não acredito em mudanças bruscas ou significativas. Os ganhos proporcionados pela estabilidade tanto para o crescimento quanto para a renda dos mais pobres foram significativos e estão consolidados na sociedade. Há um debate sobre pontos bem específicos, principalmente a evolução da poupança pública e as contas externas. Como já disse, acho que um aumento da poupança pública seria muito saudável para ajustar o nível da taxa de câmbio e, simultaneamente, garantir um menor déficit em transações correntes, além de permitir mais recursos para o investimento público e melhores condições para o setor privado.