Título: Reflexões sobre a proposta de emenda Ibsen Pinheiro
Autor: Bregman,Daniel
Fonte: Valor Econômico, 12/05/2010, Opinião, p. A12

Uma questão ainda pouco explorada é a destinação que se dará dá aos recursos estaduais e municipais

A Câmara dos Deputados aprovou a chamada Emenda Ibsen Pinheiro, que propõe a transferência a todos os estados e municípios dos royalties e da participação especial atualmente destinados às localidades produtoras. Pela proposta as receitas do petróleo seriam distribuídas pelos índices dos fundos de participação, o que acabaria com qualquer diferenciação entre estados e municípios produtores. Caso a proposta seja aprovada no Senado e não seja vetada pelo Executivo, os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo e alguns de seus municípios perderam uma relevante parcela de seus orçamentos. Não é por acaso que a aprovação na Câmara despertou a ira da classe política e da população dessas localidades. No entanto, deve-se separar a análise dos impactos da Emenda Ibsen Pinheiro para os estados e para os municípios, pois as motivações da distribuição dos royalties e participação especial para essas duas esferas são distintas. Entre os estados, há pelo menos uma boa justificativa para manter as regras de distribuição do jeito que estão: toda a arrecadação de transações interestaduais envolvendo o petróleo fica com o estado de destino, enquanto o padrão para os demais produtos é que a tributação seja repartida entre os dois estados envolvidos. Explicando melhor: se um produto mineiro entra em São Paulo, os mineiros recolhem a alíquota interestadual de 12%, enquanto os paulistas se apropriam da diferença entre sua alíquota interna (18% para a maioria dos produtos) e os 12% que ficaram em Minas, ou seja, arrecadam 6%. Se um produto sai do Sul ou do Sudeste para as demais regiões, a alíquota interestadual (de origem) cai de 12% para 7%. Entretanto, se o produto em questão for o petróleo do Rio de Janeiro, o estado de destino recolhe toda a sua alíquota interna, pois a alíquota interestadual é zero. A redistribuição dos royalties entre todos os estados e a manutenção do tratamento diferenciado do ICMS da comercialização do petróleo representaria uma injustiça com os estados produtores, que não poderiam contar com esses recursos para a promoção de políticas orientadas a superar a dependência do petróleo. Por se tratar de um recurso não-renovável, a tributação da exploração de petróleo deveria beneficiar - e não prejudicar - as regiões produtoras. Em relação aos municípios produtores, a situação é bem diferente. Se é verdade que eles devem ficar com uma fatia dos royalties para compensar os impactos sociais e ambientais causados pela indústria do petróleo, também é sabido que nos últimos anos alguns municípios fluminenses receberam recursos totalmente incompatíveis com suas atribuições, e seus orçamentos contrastam com a realidade observada pela maioria dos municípios brasileiros. Campos dos Goytacazes, por exemplo, recebeu R$ 418 milhões a título de participação especial em 2009 de acordo com a ANP. A atual estrutura de distribuição de royalties foi definida na lei 9.478 (Lei do Petróleo), de 1997, quando a produção nacional de petróleo era relativamente pequena e o preços internacionais do produto estavam baixos. Como a arrecadação dos royalties e da participação especial depende da trajetória dessas variáveis, os valores destinados aos municípios ainda eram pequenos se comparados aos verificados atualmente, apesar de já apresentarem uma discrepância em relação à maioria dos orçamentos municipais no Brasil. No entanto, os valores destinados aos municípios a título de royalties e participação especial aumentaram vertiginosamente ao longo dos anos, fato que intensificou os fluxos migratórios aos municípios mais abastados do Norte Fluminense. As cidades cresceram desordenadamente, e seus novos e antigos cidadãos se tornaram dependentes do gasto público municipal. Aparentemente a maioria dos municípios não está se preparando para o futuro sem o petróleo. Apesar da reconhecida injustiça, cabe questionar: será que a repentina retirada dos royalties e participação especial dos municípios produtores é adequada? Ou esse processo deveria ser gradual, de maneira a minimizar os impactos sociais para as regiões afetadas? Por mais justa que seja, qualquer modificação desse montante nos recursos orçamentários deveria prever uma longa transição. Uma questão que vem sendo pouco explorada no debate é a da nova destinação que a Emenda Ibsen Pinheiro dá aos recursos estaduais e municipais. Propõe-se distribuir os recursos de acordo com os índices do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), criados para reduzir as desigualdades regionais por meio do reforço dos orçamentos de estados e municípios mais pobres. No entanto, o reforço dos orçamentos municipais não é o único caminho para reduzir as desigualdades regionais. Outras medidas, tais como a utilização de recursos estaduais e federal no âmbito de uma nova política regional, ou a vinculação dos recursos do petróleo a gastos com educação sequer foram cogitados. Aliás, há muito tempo que não se discute política regional no Brasil. Ironicamente o maior sinal de abandono do debate das questões regionais vem dos critérios de distribuição dos fundos de participação, os mesmos que serão utilizados na distribuição dos royalties e da participação especial caso a Emenda Ibsen Pinheiro seja aprovada. Os critérios dos fundos de participação foram definidos em 1989, e deveriam ter sido revisados no início da década de 1990. Essa revisão, no entanto, nunca ocorreu, e os estados e municípios que enriqueceram desde a década de 1980 seguem recebendo muitos recursos, ao mesmo tempo que os que empobreceram não viram sua participação nos fundos de participação aumentar. Será que não seria mais adequado revisar os critérios dos fundos de participação antes de distribuir mais dinheiro por seus indicadores de vinte anos atrás? As questões relativas ao federalismo fiscal são complexas e precisam de soluções adequadas. Enquanto a distribuição de recursos entre a União, estados e municípios não for submetida às atribuições de cada ente federativo e não levarem em consideração as especificidades de cada região, os problemas na qualidade da despesa pública, na intensificação dos fluxos migratórios e na desigualdade regional tenderão a se perpetuar.