Título: Brasil abre uma brecha para negociação com o Irã
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2010, Opinião, p. A12

A diplomacia brasileira conseguiu um tento ao abrir um espaço para negociação sobre o programa nuclear iraniano onde antes só havia desconfianças e impasses. A disposição demonstrada pelas autoridades iranianas às gestões do Brasil e da Turquia não exclui o fato de que o Irã poderá, se quiser - e os diplomatas americanos não têm muitas dúvidas a respeito - , levar à frente um programa militar de artefatos nucleares. Por outro lado, uma nova chance foi aberta para que sejam colocadas na mesa garantias suficientes de que o Irã atenda às recomendações da ONU e enverede claramente pelo caminho do uso pacífico da energia nuclear. A política do Oriente Médio é um labirinto minado e uma das incógnitas do acordo obtido é saber por que o regime iraniano rejeitou uma proposta algo semelhante apoiada pelos EUA, França e Rússia e encaminhada em outubro pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Na época, o Irã exigiu a troca simultânea e imediata de 1.200 kg de urânio de baixo teor de enriquecimento por 120 kg do material enriquecido a 20% e que ela fosse feita em seu território. Agora isso ocorrerá na Turquia e, provavelmente, com prazo de até um ano. Os especialistas atribuíram a recusa a divergências entre as elites dirigentes do Irã. Um princípio de explicação pode ser encontrado na avaliação realista da cúpula iraniana de que nunca as sanções estiveram tão prestes a se concretizar como agora e de que poucas vezes a situação política e econômica do país foi tão ruim para ter de lidar com uma ameaça tão séria. O país deve crescer 2,2% em 2010, ante 1% em 2009, com uma inflação que já se arrasta na casa dos dois dígitos há oito anos e chegou a 17% no ano passado. A insatisfação política com o governo de Mahmoud Ahmadinejad explodiu a partir das massivas fraudes ocorridas nas eleições presidenciais de 2009, instigando de um lado uma oposição interna ao regime e, mais grave, manifestações de rua que tendem a extrapolar o alvo e colocar em risco o próprio sistema teocrático. As concessões do Irã a dois países neutros na disputa, como Brasil e Turquia, atende a vários objetivos. Elas ganham tempo para o país, que terá de se defrontar com um plano de sanções praticamente pronto e contribuem para desarmar sua premência, ao tornar impossível o consenso no Conselho de Segurança da ONU, onde Brasil e Turquia são membros não permanentes. As manobras da diplomacia brasileira podem ter também dado mais combustível à proverbial recalcitrância da China, que tem bons e crescentes negócios com o Irã e hesita até agora em aprovar as represálias desenhadas pelos EUA. A embaixada chinesa em Washington emitiu comunicado na terça-feira ressaltando que o diálogo e as negociações são a abordagem predileta do país na questão. As ações de um "outsider" na política do Oriente Médio, como o Brasil, e de um país interessado na estabilidade da região, como a Turquia, colocaram um sério obstáculo para o plano americano das sanções. A real dimensão das concessões iranianas será devidamente apreciada quando os termos do acordo forem submetidos à AIEA e avaliados pelos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido). Os EUA reagiram ontem ao acordo com o Irã e por intermédio da secretária de Estado, Hillary Clinton, comunicaram que os membros do Conselho de Segurança já haviam chegado a um entendimento sobre um esboço das sanções a serem aplicadas ao regime iraniano. Desde que descartou a proposta da AIEA em outubro, o Irã ampliou seu enriquecimento de urânio para 2.065 quilos, segundo o "Financial Times". A proposta atual tira da zona de atrito 1.200 quilos, ou 58% do total. Como os dirigentes iranianos, no mesmo dia em que festejavam com Brasil e Turquia, afirmaram que continuariam enriquecendo o material a 20%, atraíram o ceticismo para a promessa de entendimento com a ONU e reforçaram desconfianças antigas. Para que a cartada brasileira com o Irã seja plenamente bem-sucedida, é preciso que o governo iraniano esteja negociando a sério, algo que não depende só da boa vontade de seus interlocutores. O país tem ignorado as resoluções da ONU e não permite inspeções satisfatórias da AIEA. A premissa da ação brasileira é de que o acordo é para valer, uma suposição intrépida a respeito de um regime que frauda eleições, tem uma retórica incendiária em relação a Israel e propaga seus avanços nucleares. Será ótimo para todos se a diplomacia brasileira estiver certa.