Título: Lula confunde, em Cuba, nos EUA, no Irã
Autor: Leo, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2010, Política, p. A2

Deve ser para evitarmaior confronto com o governo dos Estados Unidos que o presidente LuizInácio Lula da Silva evita dizer em público o que pensam muitosintegrantes do governo sobre Cuba: o país, único experimento socialistasobrevivente da Guerra Fria nas Américas, foi, durante a históriarecente, alvo de todo tipo de sabotagem por parte dos governosamericanos, de atentados contra Fidel Castro ao embargo econômicocontra a ilha, condenado em todo o continente. Mas, quem sabe, Lulaevita o argumento porque nem mesmo ele pode justificar os recentes - eindefensáveis - ataques que fez aos dissidentes cubanos.

Provocadoa se manifestar sobre a morte de um dissidente em greve de fome e sobreas prisões de opositores ao regime, Lula pode ter pensado nadificuldade do regime cubano, em manter a estabilidade política de umpaís pobre com governo contrário aos interesses dos EUA. Seconsiderasse essa situação motivo suficiente para evitar ataquesabertos ao governo de Raúl Castro, poderia esquivar-se da pergunta, masnão: criticou os presos. O fato concreto, como diria o próprio Lula, éque, com a repressão em Cuba, os irmãos Castro e o apoio de Lulasabotam não só o bom senso, mas até a tentativa do governo Barack Obamade distensão nas relações com a ilha.

Obamamostrou, desde o início do governo, disposição para relaxar osconstrangimentos impostos a Cuba e aos cubanos. Quem conhece osmecanismos da política americana é capaz de imaginar a dificuldade donovo governo dos EUA, já às voltas com problemas sérios como as guerrasherdadas dos republicanos e a necessidade de uma reforma de saúde, paraganhar no Congresso aprovação a medidas de aproximação com Cuba. Émuito maior que no Brasil o poder do Congresso nos EUA, e é forte ainfluência da comunidade cubana exilada.

UmaCuba menos policialesca contra a dissidência interna, disposta a soltardissidentes presos por crime de opinião, daria bons argumentos a Obama,na discussão política americana, para, num gesto de reciprocidade,avançar na retirada do embargo econômico, que oprime a ilha e prejudicaaté interesses de empresas americanas dispostas a fazer negócios com oregime de Fidel e Raúl Castro. Lula poderia ajudar nesse esforço, mas oendosso cego e surdo à ação stalinista contra a oposição só reforça alinha dura na ilha e desmoraliza as credenciais democráticas dopresidente brasileiro.

Curiosamente,as relações entre Brasil e Estados Unidos, até na contenciosa questãodo programa nuclear iraniano, são bem mais amistosas do que parecemacreditar os comentaristas brasileiros que usam o fígado, não océrebro, para analisar a política externa do Brasil. No Executivoamericano, pelo menos, há respeito - ainda que acompanhado de incômodo- aos argumentos levantados pelo Brasil para negar o apoio às sançõescontra o Irã defendidas pela Casa Branca.

OsEUA compreendem que o Brasil, ele próprio engajado em um programanuclear com fins pacíficos, relute em condenar os programas dos outros.E, principalmente, o governo dos EUA reconhece que a posição brasileiraé motivada não por antiamericanismo, mas pela avaliação de que sançõescontra o Irã só isolariam o país e fortaleceriam os radicais, no país,deixando pouco espaço para os moderados. Se transpostos a Cuba, osargumentos levantados no Planalto para o Irã, mais motivos teria Lulapara interceder pelos dissidentes, ou, pelo menos, não buscarjustificativas para a repressão cubana. No entanto, o presidentebrasileiro preferiu comparar os dissidentes a delinquentes comuns. Masnão é essa a questão levantada pelos EUA sobre o Irã.

Oque americanos, franceses, alemães dizem do Brasil, no caso iraniano éque os brasileiros chegaram um pouco tarde nessa negociação e podematrapalhar. É considerada ingênua a ideia do governo em Brasília, deque gestões políticas e diplomáticas podem atrair o Irã a um acordopara tornar mais transparente seu programa e dar garantia de que não ousará para fins militares. Isso já foi tentado, pela França, semresultado.

Nem Cubanem Irã são, porém, um impedimento ao esforço (real) dos governos dosEUA e Brasil de fazer uma parceria no continente. Foi reconhecido emWashington o papel legítimo do Brasil como interlocutor do regimeiraniano, a quem Lula transmitiu preocupações semelhantes às dos EUA eda Europa em relação à defesa dos direitos humanos e a condenação aouso bélico da energia nuclear. O Brasil é um mercado atraente, em ummomento em que Obama se empenha em um programa para dobrar asexportações americanas em cinco anos, e um aliado de peso numcontinente complicado como o sul-americano.

Háuma faceta importante da diplomacia - especialmente nos Estados Unidos:a diplomacia parlamentar. Fazer política externa mirando o públicointerno é quase inevitável, e Lula, com certas declaraçõesunidimensionais de agrado a Cuba, Venezuela e Irã, parece cobiçar aaliança incondicional da esquerda brasileira para as próximas eleições.Deveria levar em conta, porém, que, assim, degrada a credibilidadealcançada por seu governo moderado no mundo político internacional, e,com isso, mina as condições políticas, nos EUA, para firmar o apoio daadministração americana. Prejudica brigas parlamentares importantes queObama se mostrou disposto a travar, como o fim da tarifa punitiva aoetanol brasileiro, só para dar um exemplo evidente.

Hácabeças nos EUA capazes de compreender as sutilezas do jogo diplomáticoque o maniqueísmo de certos analistas brasileiros não deixatransparecer no debate político brasileiro. Há uma disputa surda deinfluência na América do Sul e, mais recentemente, na América Central eCaribe, entre duas esquerdas, a pragmática e moderada de Lula, e arevolucionária e confrontacional de Hugo Chávez. Essa disputa seestende a Cuba, onde o endurecimento de Lula em relação aos Castrodeixaria livre o espaço à radicalização de Chávez. A pressão discretade Lula para uma transição gradual de Cuba às liberdades democráticas éreconhecida em Washington. Mas derrapadas como o ataque aos dissidentescubanos são difíceis de entender. Ou de engolir.

Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras