Título: Irã quer manter enriquecimento de urânio
Autor: Costa , Raymundo
Fonte: Valor Econômico, 18/05/2010, Brasil, p. A4

Isolado internacionalmente e com dificuldades políticas e econômicas internas, o Irã aceitou enviar seu urânio enriquecido para o exterior, nos termos de um acordo para evitar a ampliação das sanções das Nações Unidas ao país. O Irã, no entanto, não se comprometeu em encerrar seu programa de enriquecimento de urânio, base da discórdia com países ocidentais, que temem que o regime dos aiatolás tenha secretamente um programa de bomba nuclear.

O acordo foi negociado pelo Brasil e a Turquia, com sucesso maior que o esperado, como demonstrava o ceticismo expressado sobretudo pelos Estados Unidos. Mas apesar da comoção que causou na diplomacia brasileira, não deixou impressionados os principais atores envolvidos. Dos Estados Unidos ao Reino Unido, passando por Israel, a desconfiança de que o Irã quer estocar material nuclear próprio não se dissipou com a assinatura do documento.

Segundo apurou o Valor, o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, disse ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que o acordo fora possível pela postura confiável dos dois países, interessados em "conversar" e não apenas em fazer "imposições", como o Irã classifica o tratamento que lhe é dispensado pelos EUA e pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

"Não existe relação entre o acordo de troca e nossas atividades de enriquecimento, vamos continuar nosso trabalho de enriquecimento de urânio a 20%", disse Ali Akbar Salehi, diretor da Organização de Energia Atômica do Irã, logo após a assinatura do acordo. Um dia antes, Said Jalili, o principal negociador do Irã para a área nuclear, tinha conversa agendada com Lula, mas cancelou a reunião. Foi considerado estranho um chefe de Estado marcar reunião com alguém de escalão inferior.

É cedo ainda para se avaliar o impacto do acordo nas relações do Irã com seus vizinhos, especificamente Israel, com o Ocidente de um modo geral e no quadro de uma política interna conturbada, apesar da aparente calmaria desde os distúrbios do fim de 2009. No que se refere aos costumes, há uma revolução silenciosa: a ditadura pode ter contados os dias de vida do líder espiritual do Irã, Ali Kamenei, como se diz nas ruas de Teerã. Há previsões de comoção social na morte de Kamenei.

As mulheres deixam claro sua insatisfação da maneira possível: nos voos de todos os jornalistas brasileiros que vieram pela Europa, especialmente Frankfurt, havia mulheres pintadas, decotes ousados e até jeans de cintura baixa, que desapareceram como que por encanto antes de elas chegarem ao salão de desembarque. O protesto é na forma de usar o véu: um pouco puxado para trás, deixa aparecer a franja do cabelo. O regime finge que não vê, porque não está numa situação muito boa. Há também "emos" nas ruas - em outras épocas diria-se que eram "punks". Em Teerã talvez sejam.

No entanto, no que se refere ao Brasil, talvez tenha sido o maior feito de política diplomática dos oito anos de governo de Lula, algumas vezes pilhada em posições contraditórias, e em outras apoiando causas altamente duvidosas, como era o caso do Irã.

Lula classificou o acordo como uma "vitória da diplomacia". O primeiro-ministro turco, Tayyip Erdogan, só desembarcou em Teerã na noite de domingo, quando o acordo negociado entre os chanceleres entrava em fase final de discussão, com papel importante para a Turquia.

O chanceler Celso Amorim aproveitou para espicaçar a indiferença com que o Alto Comissariado para Refugiados da ONU recebeu um convite para tratar do caso da professora francesa Clotilde Reiss, havia dez meses presa em Teerã por supostamente apoiar atividades antigovernamentais. Como se a simples conversa da ONU pudesse legitimar a autoridade iraniana. O Brasil resolveu agir de maneira diferente, depois de receber um pedido do presidente da França, Nicolas Sarkozy, ano passado.

De acordo com Amorim, é preciso estabelecer prioridades. Se a ONU considera importante a questão dos direitos humanos, deveria ter aceitado o convite para ouvir o Irã e dizer o que também pensava. Clotilde, que estava estudando no Irã, foi condenada e teve a pena comutada na sexta-feira, véspera da chegada de Lula ao país. Para Amorim, o consenso de Teerã também mostra que são possíveis as soluções negociadas, ao contrário do que ocorreu por ocasião da guerra do Iraque.

Independentemente das críticas, dúvidas e operacionalização do acordo (como é o embarque, quem acompanha ou não?), o fato é que o Irã cedeu bastante no documento assinado ontem pelos três países. Segundo o chanceler brasileiro, só mesmo quem quer a sanção pela sanção se recusa a reconhecer o avanço alcançado em Teerã para a "paz no mundo".

É importante contextualizar o contencioso. Ano passado, a AIEA e cinco países, que suspeitam de intenções militares no programa nuclear iraquiano, resolveram fazer uma proposta a Teerã: o país entregaria seu urânio à agência nuclear e em troca receberia o combustível para seu reator de pesquisa. O Irã impôs condições para fazer o negócio: entregaria urânio enriquecido a 3,5%, um percentual considerado baixo, e receberia de volta urânio enriquecido a 20% - o bastante para fazer funcionar o reator. Exigiu ainda que a troca ocorresse simultaneamente em território iraniano.

Brasil e Turquia, dona de uma extensa faixa de fronteira com o Irã e com Israel, inimigos declarados, foram classificados de "ingênuos" pela secretária de Estado americana, Hillary Clinton. Para surpresa até de quem estimulou a negociação, como o primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, Brasil e Turquia não só conseguiram fechar um acordo, como arrancaram muitas concessões do Irã.

A Rússia sempre estimulou a mediação do Brasil e da Turquia, embora estivesse menos otimista com o sucesso da ofensiva, da qual o presidente brasileiro nunca desistiu, mesmo nos piores momentos - não é à toa que Amorim somou 20 horas de negociação numa estada de menos de 48 horas em Teerã.

Numa primeira avaliação, os observadores acreditam que ficou mais difícil para os EUA darem seguimento ao pedido de uma nova rodada de sanções da ONU contra o Irã em junho, como estava previsto. E o Irã ganha algum fôlego para respirar, sem pressões intensas vindas de fora e de dentro do país.

Do mesmo modo como os outros países exportadores de petróleo, o Irã foi duramente castigado pelo agravamento da crise econômica e financeira mundial. Além da queda do valor do preço do barril de petróleo, a arrecadação também caiu em função da política da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) de reduzir a produção para forçar o aumento dos preços. O Irã detém 9% das reservas mundiais de petróleo. Aproximadamente 80% das receitas de exportação e 50% da arrecadação governamental são oriundas do petróleo.

Com a crise econômica batendo à porta, o regime de Ahmadinejad também foi golpeado pelas manifestações populares do fim de 2009, duramente reprimidas, e de uma reeleição que a comunidade internacional julgou fraudulenta. O fechamento político só ajudou no isolamento do Irã, que se tornou uma espécie de pária da comunidade internacional.

O Estado dificulta o acesso de banda larga à internet, pesquisas no Google sobre a professora Clotilde Reiss são desviadas e é virtualmente impossível o acesso a arquivos de imagens em tempo real - de qualquer lugar do mundo é possível visualizar os palácios governamentais iranianos. Uma simples fotografia tendo ao fundo belos murais persas são proibidos.

Mas o bloqueio econômico financeiro a que o Irã está submetido há mais de 20 anos não é visível: os cartões de crédito internacionais são recebidos sem problemas no comércio, assim como o dólar é trocado no bazar de Teerã. Pelo caótico trânsito da cidade também circulam Mercedes-Benz e BMW, enfim, o que o mundo consome de melhor.

Antes de embarcar para a Espanha, a etapa seguinte da viagem de Lula, que um dia antes esteve no Catar, o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, comemorava: "Foi um gol de placa." Tarde da noite de véspera, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, avaliava as dificuldades que ainda amarravam as negociações: "Pelo menos estamos fazendo a nossa parte."