Título: O etanol e a diplomacia
Autor: Amado, André
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2010, Opinião, p. A14

Casar crescimento sem degradação ambiental é o desafio de países onde a poluição mais vexatória é a pobreza

AAgência de Proteção do Meio Ambiente dos Estados Unidos, EPA em inglês,na verdade o ministério do meio ambiente, acaba de conceder o status de"biocombustível avançado" ao etanol produzido da cana-de-açúcar, apósreconhecer, com base em estudos científicos, que o produto reduz em 61%a emissão de gases de efeito estufa (GEE), na comparação com agasolina.

A primeiraeconomia do mundo está justificadamente preocupada com a mudança doclima que cada vez mais ameaça a qualidade de vida em nosso planeta.Sabemos todos que, sem energia, não há desenvolvimento, e que aprodução e uso de energia e os processos industriais são os grandesemissores. O maior desafio de nossos tempos é, precisamente, tentarreverter a atual tendência de degradação ambiental, sem interromper ocrescimento econômico em seu papel de oferta de emprego, sobretudo nospaíses em desenvolvimento, onde a poluição mais vexatória é a pobreza.

OBrasil tem muito a dizer sobre esse debate. Na década dos setenta, aresposta que demos à súbita elevação da conta-petróleo, quando o paísimportava cerca de 80% do combustível que consumia, veio sob a forma doPro-Álcool. Com altos e baixos, governo, empresários e centros depesquisa empenharam-se em desenvolver um combustível competitivo, oetanol de cana, que rapidamente se revelou produto de maiorprodutividade agrícola, maior eficiência energética, e mais inclusivo,já que os salários pagos na indústria sucroalcooleira se tornaram osmais altos no campo.

Poroutro lado, a adoção do flex-fuel impulsionou o processo que hoje nospermite não só exibir a matriz energética mais limpa do mundo, com aparticipação de 46% de fontes renováveis, contra a média mundial de 13%e a dos países industrializados de 6%, mas também evitar, desde acriação do ProÁlcool, a emissão de 850 milhões de toneladas de GEE naatmosfera. Como nota curiosa, cabe lembrar que o Brasil é, hoje, oúnico país do mundo em que a gasolina - e não o etanol - é ocombustível alternativo.

Oreconhecimento da EPA não nos surpreendeu, portanto, mas encheu-nos desatisfação. Vozes nos Estados Unidos e na Europa defendem a tese de quea produção de cana, pressionada pelo êxito do etanol, estariadeslocando a produção de outros alimentos, que, por sua vez, empurrariaa pecuária para áreas extrativistas e, nesse bilhar que rotulavam de"efeitos indiretos da mudança do uso da terra" (ILUC, na sigla eminglês), terminaria desflorestando a vegetação original e, claro, nocaso do Brasil, a Amazônia. Trata-se de elemento crucial do debateatual sobre a sustentabilidade dos biocombustíveis. O anúncio da EPAmostra que o Brasil não é mais o único a afirmar que, mesmo com apossibilidade teórica do ILUC, o etanol de cana-de-açúcar reduz asemissões de GEE de forma significativa e consagra-o como aliadoinestimável do combate à mudança do clima.

Marcodo esforço de promoção do debate científico sobre os biocombustíveisfoi a realização, em 19 de agosto de 2009, em Brasília, de encontro deespecialistas brasileiros e norte-americanos, no quadro do "Memorandode Entendimento para Avançar a Cooperação em Biocombustíveis" entreBrasil e EUA. O evento contou com a presença de cerca de 50especialistas em biocombustíveis de ambos os países, que debateramaspectos da nova legislação norte-americana. Com a ajuda dosMinistérios e agências de governo envolvidos no assunto; do setorprivado, em particular a União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica);e da academia (UFRJ, Unicamp e USP, e o Instituto de Estudos deComércio e Negociações Internacionais - Icone), demonstrou-seserenamente, entre outros, que a produção nacional de cana-de-açúcar sedá em áreas liberadas pelo aumento da produtividade da pecuária.

Emdezembro, como evento paralelo à Conferência em Copenhague sobreMudanças Climáticas, o Itamaraty organizou, em parceria com osministérios das Minas e Energia e Ciência e Tecnologia, e o INPE e aUnica, seminário para reiterar a contribuição do etanol de cana para aredução da emissão de GEE. Da cerimônia de abertura, participou a SraLisa Jackson, que, com a autoridade de quem chefia a EPA, afirmou -sinalizando, interpretaríamos mais tarde, a direção em que já seencaminhavam os estudos da Agência - estar claramente interessada nocaso brasileiro.

Oanúncio da EPA abriu imensas oportunidades no planoeconômico-comercial. O Congresso norte-americano estabeleceu como metaque, em 2022, o consumo de energia do país terá de incluir 80 bilhõesde litros de "biocombustíveis avançados". Desses, 15 bilhões poderãoprovir do etanol de cana. E hoje o Brasil exporta apenas 1,5 bilhões delitros do produto para os EUA.

Diferentementede um poço de petróleo, não se bombeia cana-de-açúcar de acordo com asnecessidades. Tem-se de preparar a terra, plantar a cana, colhê-la etransformá-la em etanol em uma usina que tarda cerca de 3 anos paratornar-se operativa. Apesar da recente crise financeira que paralisouos investimentos, empresários nacionais e estrangeiros decidiramapostar no etanol, antes mesmo do anúncio da EPA, como o ilustram asmuitas joint-ventures e aquisições no setor, registradas nos últimosmeses no Brasil.

Não épouco, portanto, o que temos a celebrar, tanto mais porque, senãoantes, a partir de agora o etanol brasileiro passa a ser reconhecidocomo a opção de combustível global mais competitiva e limpa. Issoreforça também os fundamentos da política brasileira na área debiocombustíveis em favor de muitos de nossos parceiros no mundo. Temposatrás, quantos atalhos teríamos podido percorrer em nosso esforço decombater as desigualdades sociais e a pobreza, se os paísesdesenvolvidos se tivessem disposto a compartir conosco os avançostecnológicos que alcançaram? Agora, o Brasil está determinado arepassar a outros países em desenvolvimento o que conseguimos dominarem termos de tecnologia do etanol de cana-de-açúcar, bem como deinstalação, desenho do marco regulatório e gerência dos projetos nosetor. Entendemos que a redução da conta petróleo, a produção local damatéria prima, a geração de bioeletricidade a partir do bagaço, acriação de empregos em sociedades carentes e a possibilidade de obterreceita adicional com a exportação de excedentes de produção traduzem osentido de missão da diplomacia que o Brasil vem praticando junto apaíses em desenvolvimento.

Apublicação da decisão final positiva do governo norte-americano sobre oetanol brasileiro é a prova de que a conjugação de trabalho científicoe empresarial sério com a atuação coordenada de Governo, setor privadoe comunidade científica é receita imbatível. Tratou-se, por um lado, deesforço paradigmático de defesa dos interesses do Brasil no exterior,caracterizado pela cooperação entre instituições e setores interessadosem prol de um objetivo comum. A ação coordenada foi fundamental para oreconhecimento da sustentabilidade do etanol produzido e consumido noPaís. Nos quase três anos de existência do Memorando de Entendimento, aestreita cooperação entre Brasil e EUA tem sido capaz de gerarresultados positivos no sentido de concretizar a visão compartilhadapelos dois maiores produtores e consumidores de biocombustíveis domundo: a constituição de um mercado internacional para o etanol e obiodiesel.

AndréAmadoé subsecretário geral de Energia e Alta Tecnologia do Ministériodas Relações Exteriores. Foi diretor do Instituto Rio Branco(1995-2001) e embaixador do Brasil no Peru (2001-2005) e no Japão(2005-2008).