Título: Brasil e EUA podem chegar a acordo sobre retaliações
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2010, Editorial, p. A14

Comotoda disputa, o caso entre Brasil e Estados Unidos, provocado pelossubsídios americanos ilegais aos produtores de algodão, tem acapacidade de revelar muito da situação dos adversários. As visitas aoBrasil, em menos de um mês, da secretária de Estado, Hillary Clinton, edo secretário de Comércio, Gary Locke, foram pródigas em declaraçõesdas autoridades americanas sobre a relevância do Brasil no cenáriointernacional e do valor que os EUA dão ao papel assumido pelo governobrasileiro nas relações diplomáticas no mundo e na região. Traduzindo:os EUA querem manter a briga no terreno onde ela começou, o campo docomércio.

Osamericanos estão acostumados a disputas comerciais, causadas peloprotecionismo americano ou por medidas ambientais que resultam embarreiras de acesso. Na maior delas, o México ganhou, no mecanismo desolução de controvérsias do Acordo de Livre Comércio da América doNorte (Nafta), o direito a retaliar o país em US$ 2 bilhões. O caso foigerado por normas nos EUA que, contrariando as regras do Nafta,bloquearam o acesso de caminhões mexicanos às estradas americanas.

Segundoobservadores da política protecionista dos EUA, os mexicanos foram"cirúrgicos": escolheram produtos das regiões de maior densidadeeleitoral dos parlamentares que votaram a medida contra os caminhõesmexicanos, fazendo os eleitores sentirem pessoalmente as agruras dasrestrições comerciais entre parceiros. Ainda não se sabe no que daráessa disputa, mas ela certamente não causou uma crise política entre osdois países.

OBrasil optou por caminho parecido, ao decidir sanções contra os EUA edeixar de fora produtos de grande peso na estrutura produtivabrasileira, dando preferências a bens de luxo e produtos agrícolas (deonde parte o lobby para manter os subsídios ao algodão americano, quedeprimem artificialmente os preços mundiais).

Ésob essa lógica que se deve entender a decisão de incluir asimportações de trigo americano entre as afetadas pelas sançõesbrasileiras. Sua tarifa de importação foi elevada de 10% para 30%. Boaparte dos moinhos, que até hoje escondem da opinião pública o realmontante de seus estoques, para facilitar a especulação com os preçosde produtos como pães e farinhas, viram nessa medida uma boaoportunidade de fazer pressão para aumentar o valor cobrado porderivados de trigo.

Adesinformação sobre o caso e sobre o mecanismo de retaliação naOrganização Mundial do Comércio facilitou o lobby oportunista. Logo,espalhou-se o alarme de que iria subir o preço do pãozinho. De fato,impressiona o valor atribuído às importações de trigo americano queserviu de base ao cálculo das retaliações: dos US$ 591 milhões emimportações afetadas pelas sanções, US$ 319 milhões seriam relativos àsimportações de trigo. Esse número é enganoso, porém.

Seguindoregras da OMC, o Brasil calculou o valor das retaliações com base nasimportações de 2008, quando, por quebra de safra no Brasil e naArgentina, as compras de grão nos EUA subiram extraordinariamente. Otrigo americano importado tem muito menos relevância agora; já em 2009,as importações de trigo dos EUA haviam despencado para US$ 46 milhões -hoje representam 2% das importações totais.

Asimportações totais de trigo, por sua vez, devem cobrir quase metade dasnecessidades do produto no mercado nacional. O trigo, segundo oMinistério da Agricultura, representa menos de 20% do preço final dopão. Muito pouco para justificar a previsão alarmista, divulgada semcritério, de que as sanções contra os EUA podem levar ao aumento de até16% no preço do pão.

Háfocos de atrito no caminho que liga Brasil e Estados Unidos, desdedivergências sobre Cuba, Irã, Venezuela e Honduras à decepção com alicitação dos caças da Força Aérea Brasileira e rusgas em torno doetanol e de outras barreiras americanas a produtos brasileiros. Mas,até agora, o tom das autoridades americanas tem confirmado a impressãode que não interessa a Obama abrir, ao sul do Rio Grande, outro foco deconflito para sua política externa.

Se o governo brasileiro evitar bravatas e provocações, não será logo o algodão o motivo de atritos sérios entre os dois países.