Título: Crise atual é complexa e justifica nervosismo
Autor: Bolle, Mônica Baumgarten de
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2010, Finanças, p. C8

Angela Bittencourt, de São Paulo

A crise financeira na Europa, que vem assolando os mercados no exterior e no Brasil, não surpreende, considerando a vulnerabilidade fiscal dos países da zona do euro. Mas o nervosismo dos mercados é justificado. A crise europeia é bem mais complexa que a deflagrada nos Estados Unidos, com a quebra do Lehman Brothers em 2008. Ninguém sabe onde a atual crise vai parar, mas a região responde por 20% do PIB mundial. A crise pode afetar a recuperação global com repercussão em outros países, avalia Mônica Baumgarten Bolle, sócia da Galanto Consultoria.

A economista lembra que a Europa tem menos instrumentos para buscar uma saída, dificuldade agravada pela falta de coordenação dos governos da região. Para o Brasil, os desdobramentos da crise importam porque um freio na recuperação econômica global pode afetar os preços das matérias-primas e agravar a deterioração do balanço de pagamentos.

Apesar da atenção do Banco Central à cena externa, é prematuro supor uma interrupção do ciclo de aperto monetário agora. A pressão inflacionária não dá alternativa ao BC, além de continuar com o aperto. Para este ano é praticamente impossível trazer a inflação para a meta. Mas olhando para o ano que vem, o aperto deve continuar. Pelo menos por enquanto.

A seguir, leia a entrevista concedida ao Valor:

Valor: A crise europeia é uma surpresa?

Mônica Baumgarten de Bolle: A resposta para isso é um grande e reverberante não. A crise europeia não é uma surpresa. Esses países todos que estão com problema agora são países que já tinham antes uma situação fiscal bastante vulnerável, mas não apenas questão fiscal. Na verdade temos um mix de problemas de endividamento um pouco diferentes. A Grécia é um caso clássico de problema fiscal, imprudência, falta de implementação de medidas para conter o crescimento do déficit da dívida. A Grécia nunca chegou nem perto de cumprir com os critérios do pacto de estabilidade fiscal. De fato, a Grécia era uma coisa óbvia, mas para o qual nem todo mundo olhava antes do agravamento com a crise de 2008. Portugal, Espanha e Irlanda são casos um pouco diferentes. Portugal também tem problema fiscal sério por ter déficit fiscal razoável. A Espanha não tem uma dívida tão grande, mas também teve no ano passado um déficit muito alto. Mas olhando para os indicadores fiscais da Espanha antes de 2009, o país não estava tão mal assim. O problema maior da Espanha é o endividamento do setor privado. E a Irlanda é um caso bem parecido com o da Espanha. Nada disso é surpresa para ninguém. Espanha, Portugal e Irlanda foram países que se aproveitaram do boom que tiveram logo após a adesão ao euro. Portugal menos porque cresceu relativamente pouco, mas a Espanha durante um tempo cresceu bastante. A Irlanda foi o maior caso de sucesso, chegou a ser chamada de "tigre europeu" e aí tudo desandou e consideravelmente após o choque brutal que foi a crise de 2008 para todos os países. Então, a crise não é uma surpresa no sentido de que todos esses países já tinham essas vulnerabilidades identificadas.

Valor: Apesar de todo esse quadro, na esteira da crise de 2008, praticamente dois anos depois, era esperada tamanha turbulência na Europa?

Mônica: Era difícil imaginar que, saindo de uma crise financeira da magnitude que foi a de 2008, não se fosse ter alguma turbulência fiscal em algum lugar do mundo. Aonde isso ia acontecer primeiro, tinha gente que já suspeitava que na Europa até porque é a região mais vulnerável por não ter instrumentos para lidar com isso. Dado que a região tem uma união monetária, o único instrumento de fato disponível são medidas de austeridade. Individualmente, os países não têm como mexer na taxa de juros e, individualmente, não têm o que fazer com o câmbio. Nesse sentido era de se esperar que acontecesse lá, mas dessa magnitude já é mais difícil de dizer, porque o que essa crise expôs é que existe uma falta absoluta de coordenação entre as autoridades daqueles países. Isso está deixando as pessoas mais preocupadas. Quando se vê a dissonância entre as diversas autoridades, fica difícil contemplar qual é o caminho que será tomado para sair dessa situação, dado que a solução deve ser coordenada. A ausência de coordenação é que pegou as pessoas de surpresa.

Valor: Podemos considerar que estamos diante de uma crise sistêmica?

Mônica: Para a Europa a crise certamente é sistêmica. Começou com a Grécia e se espalhou rapidamente para todos os outros países. Todos. O fato de o euro estar se desvalorizando da forma como está desvalorizando é sinal de que a crise está atingindo todo mundo de uma forma ou de outra. Se a crise é sistêmica para o resto do mundo, pelo menos na última semana temos evidências de que o que está se passando na Europa está deixando todos preocupados com o resto do mundo, sim. Ninguém está conseguindo avaliar direito que tipo de implicação essa crise na Europa, que não vai se resolver agora, terá nas perspectivas de recuperação da economia mundial. Tudo estava indo relativamente bem até o cenário começar a desandar na Europa. A economia mundial estava crescendo mais do que as pessoas tinham contemplado. A economia americana, particularmente, estava dando sinais de recuperação bem mais sólida do que se imaginava, claro que no caso americano com as políticas de estímulos monetário e fiscal ainda atuando, até que de repente vem essa turbulência na Europa. E a zona do euro representa cerca de 20% do PIB mundial. Ela é parte importante das fontes de crescimento da economia global. As pessoas estão olhando para isso e pensando em como o crescimento do resto do mundo será afetado. Nesse sentido, a crise pode ser sistêmica para o resto do mundo.

Valor: Os bancos europeus podem mesmo ser duramente afetados?

Mônica: Os bancos europeus estão bastante expostos às dívidas desses países, seja do setor público ou do setor privado, e quando olhamos para isso, quem tem o potencial de maior impacto no balanço dos bancos é a Espanha. A Grécia é relativamente pequena. O que as pessoas andaram dizendo, que a Grécia é uma nova Lehman, que se a Grécia reestruturar ou quebrar vai gerar uma nova crise bancária na Europa de magnitude semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos depois da quebra da Lehman Brothers, não acredito. A Grécia é relevante hoje porque faz parte da zona do euro, ponto. A Grécia é um país, não é uma instituição financeira e desse ponto de vista é muito diferente o canal de contágio que se tem. Além do mais, quando se olha a exposição dos bancos europeus, particularmente dos alemães e dos franceses que são instituições maiores, a exposição à Grécia é relativamente pequena. A exposição à Espanha é grande. Um problema de dívida na Espanha, que não é o que está ocorrendo agora, se viesse a acontecer seria bem problemático para os bancos europeus. Mas o Banco Central Europeu (BCE) adotou como parte das medidas, anunciadas três semanas atrás, a compra direta de títulos desses países que estão com problemas e em poder das instituições financeiras. Com isso, ele criou uma maneira, que não é a ideal mas quando se tem uma crise nada é ideal, para absorver pelo menos uma parte do risco dessas instituições. O BCE fez algo muito parecido com o que o Federal Reserve fez quando o Lehman quebrou e os bancos ficaram com ativos tóxicos nos balanços. O BCE criou algo análogo, mas para ativos de países com problemas. Mas isso tem custo. Tem implicações para o euro, tem implicações potenciais para a inflação na zona do euro.

Valor: Está configurada uma crise de crédito? Os mercados travaram como em 2008?

Mônica: Não, isso não aconteceu. O que houve é que há cerca de três semanas, antes do anúncio do pacote de 750 bilhões de euros e o anúncio do BCE de que ia comprar os títulos desses países com problemas, o BCE tinha dito, numa quinta-feira em que ocorreu a reunião de política monetária, que a hipótese de ele comprar títulos dos países não havia sido discutida. No final do dia seguinte, na Europa, teve sim uma paralisação do mercado interbancário. Aconteceu algo parecido, sem a mesma magnitude, com o que ocorreu nos Estados Unidos. Os bancos ficaram com medo do risco de contraparte por não saber como estava a situação dos outros bancos. O interbancário parou. Por essa razão, o BCE voltou atrás na decisão de não comprar títulos e acabou tendo que comprar os títulos. No final das contas, fez muito rápido algo parecido com o que o Fed fez quando o Lehman quebrou, mas o Fed demorou um pouco mais. O BCE foi muito criticado por ter feito a reviravolta tão rápida, dizendo uma coisa num dia e fazendo outra no outro dia, mas penso que o BCE deve ser elogiado porque mostrou que rapidamente enxergou uma piora da situação e teve que mudar sua postura. O BCE agiu bastante rápido e por isso, em seguida, os mercados reagiram tão bem.

Valor: O nervosismo dos mercados internacionais é justificado? O nervosismo dos mercados no Brasil também?

Mônica: O nervosismo dos mercados em geral é justificado sim. O problema é bastante sério. A solução do problema na Europa é bastante complexa. É muito mais complexa do que a solução para a crise americana. A crise americana foi severa, aconteceu no centro do sistema financeiro internacional, acabou se espalhando para o mundo inteiro de forma muito rápida, porque afinal de contas os Estados Unidos são o centro do sistema financeiro internacional, mas ainda assim, tendo acontecido nos Estados Unidos, que é um país que tem capacidade de emitir a sua própria moeda como também o dólar é moeda de reserva internacional, isso deixou os Estados Unidos numa posição relativamente boa para resolver a crise como se resolveu. Nesse sentido, se dispunha nos Estados Unidos de muito mais instrumentos para lidar com os problemas do que a Europa tem. A Europa não tem instrumentos e tem uma dificuldade enorme de coordenação entre as diversas autoridades. Falta de instrumentos e de coordenação faz com que as pessoas fiquem olhando para os problemas e sem saber como as coisas vão se desenrolar. Então é justificado, sim, o nervosismo nos mercados internacionais. Aqui no Brasil, o nervosismo é também justificado porque não se sabe que tipo de impacto esses problemas terão na economia mundial. E como nós estamos bem dependentes do que acontece com a economia global e bastante dependentes de uma evolução favorável dos preços das matérias-primas, porque temos uma conta corrente em deterioração que está sendo segurada em parte pelos preços favoráveis, o nervosismo se justifica porque um crescimento menos robusto da economia global vai ter um impacto sobre preços de commodities e isso vai se refletir numa piora ainda mais acentuada do balanço de pagamentos aqui no Brasil.

Valor: É possível esperar para já uma mudança na condução da política monetária do Banco Central, com alívio monetário, em decorrência da crise europeia?

Mônica: Aqui no Brasil estamos com problema de inflação crescente, a inflação está subindo, as expectativas estão completamente descoladas da meta, estamos com impulso muito forte de demanda, com o que o governo está fazendo com a política fiscal, mas mais importante ainda com a política de crédito público, com expansão de carteira de bancos públicos. Então o BC, neste contexto, não tem muita alternativa além de continuar o ciclo de aperto monetário. Claro que o fato de ter a Europa nessa situação, de ter uma perspectiva que pode não ser boa para a economia mundial, é uma preocupação. Tenho certeza que o BC está atento. Mas temos um problema doméstico, de aceleração inflacionária, que não tem jeito. É isso o que o BC faz num regime de inflação. Tem que tentar perseguir a meta de uma forma ou de outra. Para este ano é praticamente impossível, mas olhando para o ano que vem tem que continuar com o aperto pelo menos por enquanto. É prematuro dizer que está na hora de o BC interromper o ciclo, esperar ou parar para ver o que vai acontecer. Não, porque enquanto isso as expectativas vão continuar descolando e a inflação vai continuar andando. É cedo demais para isso.