Título: Modelo em risco
Autor: Capozoli , Rosangela
Fonte: Valor Econômico, 09/06/2010, Especial, p. F2

O maior sistema de saúde do mundo, considerado modelo para países ricos e em desenvolvimento, continua ameaçado pela insuficiência de recursos. O Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecido pela Constituição de 1988 com promessa de um Estado que garanta saúde para todos, ainda vive de pires na mão. Injeções que viriam com a CPMF - conhecida como imposto do cheque - e com a Emenda Constitucional 29, empacaram em alguma instância. Mesmo a proposta de repassar para o Ministério da Saúde um terço do orçamento da Previdência, não foi considerada. Em lugar dos R$ 130 bilhões esperados para 2010, a Saúde tem a metade disso, R$ 65 bilhões.

Na ponta do lápis, o SUS custa menos de R$ 1,2 por habitante/ dia, uma caixa de fósforos para cada cidadão. Em troca, o sistema faz cerca 2,2 bilhões de procedimentos por ano, incluindo 12 milhões de internações, além de praticamente bancar todos os transplantes. Sem novos recursos, o modelo SUS de atendimento universal e integral pode ir à lona. E com isso, irão se agravar as condições de atendimento de quase 140 milhões de brasileiros que dependem unicamente do sistema público. Essa perspectiva cinzenta foi o tema principal do seminário "Caminhos para o Financiamento e Acesso à Saúde", promovido na segunda-feira pelo Valor em parceria com a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).

"Enquanto o Brasil oferece atendimento a todos, na Índia apenas 20% da população têm acesso à saúde pública, e na China a saúde pública só é oferecida aos moradores urbanos", diz Reinaldo Guimarães, secretário de ciência, tecnologia e insumos estratégicos do Ministério da Saúde. No sistema britânico, que como o Brasil oferece acesso universal, o gasto per capita é 13 vezes maior que o do SUS, lembra o secretário. "A Inglaterra arca com 80% do gasto total em saúde contra 30% a 50% aqui no Brasil."

A redução de financiamento do SUS pode ser vista por outros indicadores. Segundo Sergio Francisco Piola, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os gastos públicos em países que possuem sistema de saúde com cobertura universal correspondem em média a 6,5% do Produto Interno Bruto. No Brasil, o investimento no SUS é inferior a 3,7% do PIB. "O SUS vem sobrevivendo com insuficiência de recursos", diz Piola. "É necessário ter uma regulação", defende. Em sua avaliação, não existe sistema universal que sobreviva sem uma regulamentação bem feita. "É preciso reduzir as desigualdades de acesso aos serviços e manter o atendimento integral regulado."

Um dos objetos dessa regulamentação é a Emenda Constitucional 29, que obriga municípios, Estados e União a desembolsarem uma porcentagem do orçamento para Saúde. Mesmo aprovada, a emenda aguarda há dez anos no Congresso a normatização. Piola estima que, caso já tivesse sido regulamentada, a emenda 29 vincularia 8,5% da receita corrente bruta ao orçamento de 2009, que teria um ganho de R$ 7,5 bilhões. Ao invés de R$ 58,3 bilhões, seriam R$ 65,8 bilhões. Segundo o secretário Reinaldo Guimarães, "a regulamentação da emenda 29 não se dá por motivos políticos partidários."

Enquanto a regulamentação não ocorre, o socorro ao SUS depende de novas fontes. Uma das mais cogitadas durante o seminário foi o retorno da CPMF, que acabou virando tema de batalha política e sempre corre o risco de ser desviada para outros setores que não a saúde. Segundo o cardiologista Adib Jatene, diretor geral do Hospital do Coração e "pai" da CPMF na sua passagem pelo Ministério da Saúde, diz que a elite da economia brasileira, justamente a que movimenta maior volume por meio de cheques, foi a responsável pela queda desse imposto.

"Considerando que o orçamento total da União é de R$ 1,753 trilhão, e apenas 10% são divididos entre saúde, educação, Bolsa Família, PAC e demais despesas do governo, é impossível que o SUS sobreviva sem uma nova fonte de recursos", afirma Jatene. Para o secretário Reinaldo Guimarães, "a CPMF nunca teve e não teria o condão de atingir essa meta, mas era algo importante no sentido de mitigar esse financiamento."

Se o acesso a serviços é um dos grandes desafios do SUS, o acesso a medicamentos está longe de atingir um patamar mínimo, embora a assistência integral, prometida pela Constituição, considere o remédio como parte do tratamento. De seu lado, o governo vem aumentando os gastos da farmácia básica, que passaram de R$ 2,70 per capita em 2007 para R$ 5,10 por pessoa ao ano em 2010, segundo ele. Os medicamentos excepcionais, aqueles de alto custo que não fazem parte da farmácia básica, já respondem por 10% a 15% do orçamento do Ministério da Saúde. "Para nós do SUS, a questão do preço está se tornando um gargalo insolúvel", diz Guimarães.

Uma das iniciativas do ministério tem sido centralizar as compras de medicamentos excepcionais, que antes eram feitas pelos Estados e agora são realizadas pela União, com reduções importantes de custo. Numa frente mais ampla, o Ministério da Saúde fechou 17 acordos, desde meados do ano passado, com a transferência de tecnologia do setor privado para o público. "São investimentos de R$ 800 milhões que garantem uma economia de R$ 150 milhões na compra de remédios pelo SUS", afirma o secretário.

Para Jacob Frenkel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a preocupação com o acesso a medicamentos é recente, portanto, precisa ser melhor estudada. "Num futuro próximo deve haver uma política global do governo referente ao acesso a medicamentos, mas é preciso considerar as questões tecnológicas, clínicas, econômica e logística", diz. Na sua opinião, "todos esses pilares têm de ser harmonizados". É preciso tecnologia para um medicamento de qualidade. É necessário que haja um médico para receitar esses medicamentos. Os preços terão de ser compatíveis. E os pontos de venda têm de estar próximos do consumidor, com estoques e regularidade.

O professor afirma que as classes com renda mais baixa não têm acesso sequer aos genéricos, por conta do preço. Ele defende, nesses casos, a distribuição por parte do governo, valendo-se de sua rede de 12 mil farmácias populares. Números citados por Frenkel revelam que está diminuindo o acesso da população aos medicamentos, um dado preocupante. Segundo ele, em 1989 foram comercializados 1,5 bilhão de unidades. Em 2008, as vendas ficaram em 1,6 bilhão, mais 13%, enquanto a população aumentou em 20 milhões no mesmo período.

Gonzalo Vecina Neto, superintendente corporativo do Hospital Sírio-Libanês e ex-presidente da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), pensa de outra forma. Para ele, as farmácias populares precisam fechar, sob risco de levarem à falência a rede de 60 mil farmácias privadas do país. "É preciso pensar em uma assistência farmacêutica inclusiva. A solução da questão do financiamento é cobrar pelos medicamentos, valendo-se de um fator que diferencie os preços de acordo com o poder de compra do cliente", diz. Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração defende "um Brasil competitivo também na indústria farmacêutica".

"O país deu um passo importante quando entrou na produção de genéricos e na lei de patentes de 1996 criando a defesa da propriedade industrial, mas é importante que a Anvisa regulamente todo processo", diz. Para ele, esses passos são importantes no processo de inovação. "O Brasil cresceu três vezes mais na área de inovação em relação ao resto do mundo, mas é um crescimento baixo."

Apesar do avanço, Kalil diz que essa "ciência ainda não se transformou em riqueza para a sociedade, porque apesar dos avanços, ainda não conseguimos fazer todo o percurso da rota tecnológica na área de saúde". Falta um sistema de gestão que seja eficaz, além de maior financiamento. Na prática, existe um movimento do setor produtivo e iniciativas do governo, enquanto a universidade corre paralela, o que não deveria acontecer.

O médico e pesquisador lembra que o Brasil ocupa o 17º lugar em pesquisa clínica no mundo, perdendo grandes oportunidades de avanço tecnológico, muitas vezes por conta de uma desarmonia entre dois órgãos responsáveis por esse impulso, o Conselho Nacional de Ética em Pesquisas (Conep) e a Anvisa. "Essas duas instituições têm que ajudar na inovação, e não ser mais um obstáculo que teremos de cruzar."

A lentidão na inovação não pode ser atribuída à falta de financiamento. "Nunca no país houve tantas linhas de crédito como agora. Falta de dinheiro não foi o que emperrou a pesquisa", diz Jorge Ávila, presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). Ávila vê na timidez dos empresários insegurança em relação ao retorno de seus investimentos. Embora a lei de propriedade industrial seja avançada e segura, as incertezas estariam nos próprios órgãos do governo. Diferente de outros países, onde cerca de 90% dos investimentos em pesquisa e inovação são feitos pela indústria, no Brasil eles não chegam a 50%. A outra parte é feita nas universidades, provocando uma separação entre academia e setor produtivo.

Silvio Crestana, ex-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), mostra o lado da pesquisa que vem dando certo no Brasil e que, na sua opinião, precisará ser seguido pela saúde. "Com pesquisas, quebramos o paradigma de que a soja não se desenvolveria no Mato Grosso e em Goiás. Não teríamos a melhor genética em bovinos se fôssemos ouvir a ciência daquela época. O Brasil é o terceiro maior exportador mundial, perdendo apenas para Europa e Estados Unidos."