Título: Jeitinho brasileiro vira contraponto à política monetária
Autor: Bittencourt , Angela
Fonte: Valor Econômico, 17/06/2010, Especial, p. A14

A economia brasileira não vai descer na banguela, mas o freio da política monetária reduzirá o velocímetro em um terço de 2010 para 2011. A expansão do Produto Interno Bruto (PIB) sairá da casa de 7% para 4%. A desaceleração pode provocar chiadeira, mas não preocupa. A crença é de que o país poderá reagir mais adiante, acionando instrumentos que atuam como alavancas do crescimento.

Reservas internacionais turbinadas, que aumentaram a solidez do setor externo, e mais dinheiro na praça pela forte expansão da massa salarial, que impulsionam o consumo, tornam mais sustentável o crescimento. Crédito farto, ampla fatia de empréstimos a custos inferiores aos de mercado, projetos sociais e a política de reajustes elevados do salário mínimo, com seu impacto sobre os benefícios previdenciários, dão uma nova conotação ao "jeitinho brasileiro", e ajudam a explicar a arrancada do PIB. Alguns economistas alertam, contudo, para os custos fiscais embutidos nesse "jeitinho".

João Sicsú, diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da UFRJ, avalia que o Brasil está saindo da situação de atraso para o desenvolvimento. "Uma importante característica do crescimento brasileiro nos últimos anos, especialmente a partir de 2006, é o crescimento do investimento quase três vezes em média maior que o crescimento do PIB. E isso é um indicador das expectativas dos empresários sobre o futuro da economia brasileira".

Ele lembra que o investimento vai reproduzir o crescimento ao longo do tempo. "Se o crescimento fosse baseado apenas no consumo, seria um voo de galinha. Mas investimento pavimenta o crescimento futuro", diz.

Sicsú pondera que o crescimento brasileiro desta década é muito superior ao da década anterior. "Estávamos em semi-estagnação e agora avançamos. Há pouco tempo, o PIB potencial, para os mais otimistas, era de 3,5%. Hoje, se reconhece que o PIB potencial está em 5% ou 6%. A diferença está aí. Alguns economistas estavam projetando o passado para o futuro, esquecendo que a estrutura da economia brasileira mudou".

Para ele, iniciativas que podem ser consideradas tipicamente brasileiras, como a política de reajuste do salário mínimo e projetos sociais, não estão num "plano imaginário". "Quando a Previdência Social paga benefícios da ordem de R$ 260 bilhões, esses benefícios transformam-se em consumo. É dinheiro que vai direto para o supermercado e mobiliza investimentos das empresas. Não vão para o mercado financeiro".

O economista Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Insper, vê poucos méritos no "jeitinho brasileiro". "Não há o que comemorar porque o crescimento do Brasil na última década não é espetacular. Ao contrário, é medíocre", afirma . Para ele, o crescimento neste ano deve ser visto como recuperação cíclica. "E está enganado quem imaginar que o padrão de crescimento do Brasil será este", avisa.

Ele avalia que desde o ano passado, o Brasil passa por uma recuperação cíclica que é preocupante pelo vigor. "Fatores produtivos que não estavam sendo usados, passaram a ser usados. Além disso, ocorreu uma recuperação da economia mundial e retomada de investimentos que foram afetados e até interrompidos com a crise".

Fernando Sarti, professor da Unicamp, ao contrário, vê crescimento sustentado no padrão dos últimos anos, mas alerta para a necessidade de coordenação das políticas industrial e tributária para assegurar oferta que atenda à demanda sem a pressão das importações. "Não dá para pensar que a taxa de câmbio será muito diferente da que está aí, porque o Brasil continuará superavitário em capital externo. E não dá para ignorar que entrada crescente de importações pode gerar grande eficiência de curto prazo, mas a longo prazo traz problemas".

Ele entende que a economia brasileira está sendo recolocada nos padrões pré-crise e que o consumo explica parcialmente os resultados. Assinala que a transferência de renda e o crédito são fundamentais, assim como a mudança do mercado de trabalho, mas considera o avanço dos investimentos o vetor decisivo para o atual ciclo de crescimento. "Esta é a grande novidade. Os investimentos, a Formação Bruta de Capital Fixo, crescem há 19 trimestres acima do PIB", pondera.

Sarti acrescenta que dificuldades de financiamento, que historicamente restringiam o crescimento econômico, saíram de cena. "Antes da crise, o padrão de financiamento das empresas já estava arejado. Entram aí as ofertas públicas de ações e o interesse de fundos em diversificar aplicações, voltando-se por exemplo para investimentos em infraestrutura. A crise foi uma pancada fortíssima e as grandes corporações colocaram o pé no freio. Mas a poeira baixou e as medidas anticíclicas tiveram importante efeito, puxando setores como construção civil e automobilístico. E hoje temos investimento em infraestrutura e em diversos setores industriais, dando consistência ao crescimento".

Para Giannetti da Fonseca, o enredo do crescimento sustentado passa pela constatação de que o país tem gargalos de infraestrutura e escassez de mão de obra qualificada, e considera que "alternativas" como financiamentos a juros subsidiados devem ser observadas com cuidado.

"Os empréstimos do BNDES, por exemplo, podem ser um atalho perigosíssimo para o crescimento. Usar esses financiamentos em momentos de incerteza, tudo bem. Mas as operações do BNDES têm um enorme subsídio implícito. O Tesouro passou a emitir dívida. O Tesouro capta a curto prazo e os recursos são emprestados por muitos anos. A magnitude desse subsídio é da ordem de R$ 10 bilhões a R$ 12 bilhões por ano, pelos próximos vinte anos. Isso é um retrocesso. Não aparece na dívida líquida do setor público e não é evidente que aumenta o investimento agregado no Brasil".

Giannetti da Fonseca lista as condições que ajudaram o Brasil a atravessar a crise sem problemas maiores ou absorvendo a crise de maneira positiva: exportações relativamente baixas frente ao PIB; extraordinária virada das contas externas, usando o boom das commodities para criar um colchão de reservas internacionais, tornando-se credor externo; cuidadosa gestão da dívida interna pelo Tesouro especialmente no primeiro mandato do presidente Lula, evitando qualquer susto quanto à dinâmica da dívida; e um sistema bancário fortalecido porque sempre esteve sujeito a uma regulação muito exigente.

Carlos Eduardo Gonçalves, professor da FEA/USP, considera que as condições estruturais da economia brasileira, definidas nas últimas décadas, certamente contribuíram para o sucesso da ação rápida na crise. "Foram de fundamental importância o câmbio flutuante, a solidez do sistema bancário e a situação fiscal confortável em termos de endividamento frente ao PIB".

Ele explica que as mudanças estruturais da economia brasileira vêm desde a década de 1980 e tornaram o Brasil mais estável e capaz de absorver choques, potencializando a reação à crise financeira internacional. Além disso, a reação à crise foi quase perfeita.

"O Banco Central cortou rapidamente a Selic em um movimento nunca visto neste país; cortou o compulsório bancário, mas errou recentemente ao recompor esses depósitos porque são muito elevados; orientou a aplicação de depósitos compulsórios para a compra de carteiras de bancos pequenos e médios e ajudou a conter o pânico", afirma Gonçalves..