Título: Reforço no campo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 21/06/2010, Especial, p. F1
As políticas de microcrédito rural percorrem uma geografia diversa daquela escolhida para os tradicionais empréstimos para investimentos e custeio das safras e da produção pecuária. O distanciamento entre essas duas formas de financiamento é proposital e tem se tornado mais evidente na medida em que novos formatos e tecnologias vêm sendo incorporados ao sistema, especialmente a partir de 2005, quando surgiu no mercado o Programa de Microcrédito Rural (Agroamigo) do Banco do Nordeste do Brasil (BNB).
O cruzamento entre as estatísticas do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Banco Central evidencia essas diferenças. E reforça a necessidade de políticas direcionadas para as regiões rurais menos desenvolvidas, no bojo de uma nova geração de programas sociais, que embutem sistemas inteligentes de governança e carregam potencial para gerar desenvolvimento local, segundo observa o economista Ricardo Abramovay, da Universidade de São Paulo (USP).
As linhas tradicionais do crédito rural têm sido direcionadas para empréstimos de valor mais elevado, destinados a produtores de maior porte, enquanto menos de 18% dos estabelecimentos familiares têm acesso a financiamentos, o que deixa 82% deles a descoberto, segundo números do mais recente Censo Agropecuário, realizado em 2006 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Como o censo apontou a existência de 4,37 milhões de estabelecimentos explorados por produtores familiares, isso significa que 3,59 milhões não contrataram qualquer tipo de financiamento. Ao longo de 2009, as operações acima de R$ 300 mil consumiram 44,64% dos recursos destinados a produtores e cooperativas, embora representassem 1,04% dos contratos. O valor médio dessas operações atingiu R$ 1,279 milhão, total 755 vezes maior do que a média de contratações no microcrédito rural, estacionadas ao redor de R$ 1,69 mil na safra 2009/2010.
As regiões Sul e Sudeste do país, que somadas respondem por 54% da produção de cereais, leguminosas e oleaginosas, ainda conforme o IBGE, levaram, em 2009, quase 74% do crédito rural tradicional. O Norte e o Nordeste receberam uma fatia inferior a 11%, ligeiramente superior à sua participação na produção agrícola, em torno de 10,5%.
Os sinais se invertem quando se trata do microcrédito rural, modalidade relativamente recente, que o governo e o sistema financeiro público estão aprendendo a operar. Na safra 2008/2009, pelos dados do MDA, Norte e Nordeste, com amplo destaque para a segunda região, abocanharam 88,2% dos recursos e caminham para contratar quase 90% dos desembolsos na safra 2009/2010.
Atualmente, diz João Luiz Guadagnin, diretor de financiamento e proteção da produção da Secretaria de Agricultura Familiar do MDA, os contratos de microcrédito rural, incluindo os bancos do Brasil e da Amazônia, além do BNB, beneficiam em torno de 1,2 milhão de famílias, quase 6 milhões de pessoas, concentradas no Nordeste, onde está metade dos agricultores familiares brasileiros, segundo o Censo Agropecuário.
A primeira tentativa de se criar no país um sistema de microcrédito para o campo ocorreu em 1999, três anos após o surgimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), com a abertura de uma linha mais conhecida como "Pronafinho", destinada a micro e pequenos produtores com renda familiar bruta de R$ 20 mil, algo equivalente a R$ 6 mil líquidos por ano ou R$ 500 por mês.
"Percebemos que um grupo importante de produtores continuava fora do crédito, representado por aqueles produtores com renda bruta familiar de R$ 6 mil por ano, o que daria mais ou menos R$ 1,8 mil líquido ou apenas R$ 150 mensais", diz. Segundo ele, para socorrer essa população, majoritariamente concentrada no Nordeste, o governo recorria a políticas emergenciais, incluindo a abertura de frentes de trabalho, carros pipa e bolsa estiagem.
Uma nova linha foi implantada em 2001, no âmbito do Pronaf, com empréstimos limitados a R$ 500 e bônus de adimplência de 40%, operada apenas pelo BNB. Dois anos mais tarde, o governo redesenhou a linha, adotando o conceito de microcrédito produtivo rural, ajustado às necessidades do produtor. Os empréstimos, com juros de 0,5% ao ano e prazo de dois anos, incluindo um de carência, tiveram um teto de R$ 2 mil por família, que passou a ter direito a um bônus de 25% sobre o contratado em caso de adimplência.
É preciso lembrar, diz Guadagnin, que 35% dos tomadores de microcrédito rural no Nordeste e 40% na região Norte são analfabetos, parcela reduzida para 30% no Centro-Oeste e para 15% no Sudeste. Na média do país, tomando como base dados disponíveis para a safra 2008/2009, um terço dos produtores que socorridos pelo Pronaf B não sabiam ler nem escrever.
Durante a safra 2009/2010, encerrada em junho, o ministério estima ter realizado perto de 280 mil operações com recursos do Pronaf B, atingindo R$ 475 milhões. No primeiro caso, haveria um recuo de quase 13% em relação aos 321,8 mil contratos firmados no ano anterior, mas o valor contratado cresceria pouco mais de 4%. O plano de safra divulgado pelo governo federal prevê recursos de R$ 677,95 milhões para a safra 2010/2011, um recorde na história do Pronaf B e quase 50% mais do que os desembolsos realizados em 2008/2009, suficiente para 405 mil contratos.
Historicamente, essa linha operou com níveis de inadimplência elevados, atingindo, na média, perto de 18%. Mas, em algumas regiões, os atrasos chegam a superar 30%, atingindo, em março deste ano, 38,3% na média da carteira do Pronaf B operada pelo Banco da Amazônia. Nesses níveis, qualquer sistema de crédito estaria ameaçado de desmoralização e colapso, diz Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da USP, que tem acompanhado de perto a experiência inédita de microcrédito rural desenvolvida pelo BNB no Nordeste brasileiro.
Resultado de uma parceria com o MDA e com o Instituto Nordeste e Cidadania (Inec), o Agroamigo, destaca Roberto Smith, presidente do BNB, pode ser considerado um sistema inovador e pioneiro na América Latina, quando se trata de distribuir microcrédito rural em grande escala. No dia 8 de junho, Smith recebeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Fortaleza, para celebrar o quinto aniversário do programa e assinar o milionésimo contrato, ampliando o estoque de microcrédito rural do banco para quase R$ 1,4 bilhão.
Segundo Smith, um terço dos beneficiários do Agroamigo participa também do Bolsa Família e, nesse sentido, o programa de crédito pode representar a possibilidade de "uma porta de saída" para essas famílias, ao financiar atividades agrícolas e não agrícolas, como o artesanato, reforçando a renda familiar na região.
A inovação tecnológica incorporada ao programa, que trabalha nos moldes do microcrédito urbano, com a utilização de assessores de crédito, fez a inadimplência desabar de mais de 30% até 2006 para 3,73% este ano. "A solução adotada traz um ensinamento que ilustra o enorme potencial de uma nova geração de políticas sociais, que adota sistemas inteligentes de governança, aposta no uso racional dos recursos públicos e se apoia na aprendizagem coletiva como método de desenvolvimento", destaca Abramovay.