Título: As intempestivas mudanças na lei de licitações públicas
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/07/2010, Opinião, p. A12
Até 2016 estarão em licitações públicas projetos de infraestrutura bilionários. Excluída a exploração de petróleo no pré-sal, estima-se que a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 consumam R$ 142 bilhões; o Trem de Alta Velocidade ligando São Paulo ao Rio, mais R$ 33 bilhões; a usina hidrelétrica de Belo Monte, cerca de R$ 25 bilhões, e mais uma dezena de obras - a conta passa com folga dos R$ 200 bilhões. É muito dinheiro em jogo e, da noite para o dia, com uma Medida Provisória, a 495, de 19 de julho, o governo mudou vários pontos da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, que é o principal marco legal das concorrências públicas.
Não se conhece os motivos para a pressa e é francamente ruim para um governo em fim de mandato fazer mudanças tão importantes que condicionem as compras de bens e serviços pelo Estado a partir de agora. Além disso, em assunto de tal relevância, seria correto o encaminhamento de um projeto de lei ao Congresso. Ainda que não sejam claras as razões, o fato é que é perceptível um certo açodamento com o tema no Planalto. Nos últimos tempos, vários balões de ensaio foram lançados com o intuito de retirar o poder do Tribunal de Contas da União (TCU) de fiscalizar obras contratadas e paralisá-las, após auditorias apontando irregularidades. Ainda que haja imperfeições nos procedimentos do TCU, a história das licitações no Brasil mostra que os maiores riscos advêm esmagadoramente da falta de fiscalização adequada, do conluio de agentes públicos com empresas privadas para obter resultados predeterminados, de editais escritos para permitir a participação de um grupo selecionado de empresas etc. Há falta, e não excesso, de vigilância por parte dos poderes públicos nas licitações.
As mudanças feitas pela MP 495, no entanto, envolvem as concorrências no véu do subjetivismo e da arbitrariedade. No artigo 3º, que modifica a Lei 8.666, foi introduzido, como objetivo da licitação, garantir "a promoção do desenvolvimento nacional" e as modificações posteriores são decorrentes dessa definição. Para critério de desempate nas licitações, a preferência agora será dada, além das definições já existentes - para bens e serviços produzidos no país, ou produzidos e prestados por empresas brasileiras - para empresas que invistam em pesquisa e tecnologia no país.
Além disso, foi criada uma margem de preferência para "produtos manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras". Ela será definida pelo Executivo e não poderá exceder valor 25% superior "ao preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros".
A margem de preferência, pela MP, será objeto de avaliações que levem em conta a geração de emprego e renda, efeitos na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais e desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país. Haverá igualmente margem de preferência a bens e serviços com desenvolvimento tecnológico no país. As bases para a margem, portanto, nada têm a ver com o objetivo geral da concorrência, que é obter o melhor bem ou serviço pelo menor preço. Projetos de alto conteúdo tecnológico em geral geram poucos empregos, por exemplo, ou o contrário, projetos intensivos em mão de obra usualmente não contêm o estado da arte em tecnologia. Aumentar a arrecadação pública é um contrassenso nas concorrências em que está em jogo quem oferece a menor tarifa aos usuários dos serviços públicos.
O único ponto relevante em que a margem de preferência criada pela MP é justificável é o do desenvolvimento tecnológico, pois ele pode forçar transferência de tecnologia ou sua internalização no processo produtivo, com evidentes benefícios para o país.
Pretextos nacionalistas, mostra a história, podem encobrir interesses inconfessáveis. A MP poderá "objetivamente" excluir algumas multinacionais de licitações e incluir outras, ou alijar fortes concorrentes estrangeiros, mesmo que tenham produção local. Para os concorrentes externos, sem bases locais, as portas das licitações podem ter se fechado definitivamente, exceto nos casos em que haja bens e serviços não produzidos no país. Vencer disputas contra uma margem de preferência de 25% mais as tarifas de importação é impossível. Com os novos critérios, o Executivo terá todos os elementos para, antes da licitação, escolher as empresas que a disputarão. É, como o passado mostra, criar uma fonte inesgotável de corrupção.