Título: Argentina custeia programas sociais com caixa da previdência
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 28/07/2010, Internacional, p. A9

Três milhões de netbooks para alunos do ensino médio, crédito barato para a compra de automóveis zero quilômetro, urbanização de favelas e o bilionário programa de gratificação universal por filho - versão local do Bolsa Família. Tudo isso sai do orçamento da Administração Nacional da Seguridade Social (Anses), o INSS da Argentina, transformado recentemente em uma das principais fontes de financiamento para o governo da presidente Cristina Kirchner.

O caixa da Anses entrou no centro do debate político argentino com a insistência da oposição, hoje maioria na Câmara dos Deputados, em elevar o salário mínimo pago a aposentados e pensionistas. Para o governo, esse projeto quebraria o sistema previdenciário. Para a oposição, não falta dinheiro e o uso político dos recursos da Anses a converteu na "caixinha feliz" de Cristina e seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, espécie de primeiro-ministro nos bastidores da Casa Rosada.

O uso do dinheiro da Anses dá a impressão de que o sistema previdenciário da Argentina tem forte superávit, mas esse não é o caso. O balanço entre receitas e despesas correntes é bastante apertado. A folga só existe por causa da reestatização total do sistema, às vésperas de completar dois anos.

Em 1994, a previdência mudou para um regime misto em que os trabalhadores puderam escolher entre continuar contribuindo para o Estado ou ter contas individuais administradas por fundos de pensão, as chamadas AFJP. Com a crise de 2001, o sistema começou a dar sinais de colapso. Em 2008, Cristina estatizou as AFJP.

Os fundos tinham um patrimônio bilionário. Eram investimentos em títulos públicos, renda fixa, ações de empresas e aplicações no exterior. Tanto seus compromissos financeiros quanto esse patrimônio foram incorporados pela Anses, que criou um Fundo de Garantia de Sustentabilidade (FGS) para assegurar o futuro pagamento de aposentadorias e pensões.

É como se, no Brasil, os ativos da Petros, da Previ e de todos os os outros fundos de pensão tivessem passado ao patrimônio do Estado. Hoje o FGS tem 150 bilhões de pesos (cerca de R$ 75 bilhões) em caixa. No primeiro semestre, graças à aplicação desses recursos, houve lucro de 3,7 bilhões de pesos. Isso tem salvado as contas públicas. Na planilha contábil do governo, esse lucro entrou como receita e garantiu um comemorado superávit nominal (após o pagamento de juros da dívida) de 197 milhões de pesos de janeiro a junho.

"É crescente o uso da Anses como caixa de financiamento do governo", critica Soledad Pérez Duhalde, analista fiscal da consultoria Abeceb. Ela nota que tem aumentado a concentração dos investimentos da Anses em títulos da dívida pública, que já representam quase 62% do total de aplicações do FGS. Isso coloca o governo na inusitada condição de credor de si mesmo. Com um detalhe: os títulos têm baixa liquidez. "Se um dia quiserem vender esses títulos, será que poderão? Seria um movimento tão importante no mercado que a simples especulação de venda dos papéis seria suficiente para derrubar seu valor de face", diz.

No início do ano, a utilização das reservas administradas pelo Banco Central despertou polêmica, mas é a Anses quem mais tem servido para projetos do casal Kirchner. Uma das iniciativas controvertidas financiadas pelo caixa da previdência foi a distribuição de conversores de TV digital para população de baixa renda. A Anses também já foi empregada, neste ano, para financiar a construção de usinas termelétricas e como base para uma linha de crédito com juros de 9,9% para projetos industriais - uma taxa baixíssima para padrões argentinos.

Consciente de que esses usos ajudam a alavancar a popularidade de Cristina e de Néstor Kirchner, a oposição fez valer a sua maioria na Câmara para iniciar o debate sobre o aumento das aposentadorias e das pensões. Dos 5,5 milhões de beneficiários, cerca de 4,4 milhões recebem o valor mínimo de 895 pesos (perto de R$ 440).

Especialistas veem toda essa discussão como uma ameaça à sustentabilidade da previdência argentina. "Qualquer cálculo que leve em conta uma evolução razoável dos ativos e passivos, o cumprimento das normas vigentes e o rendimento esperado dos fundos disponíveis hoje em dia demonstra que o sistema não pode se sustentar mais além de alguns anos", afirma Rubén Lo Vuolo, pesquisador do Centro Interdisciplinar para o Estudo de Políticas Públicas (CIEPP).