Título: Concorrência no mercado de cartões de pagamento
Autor: Prates , Cleveland
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2010, Opinião, p. A12

O mês de julho foi particularmente interessante para se analisar os efeitos de medidas governamentais recentes exigidas dos participantes do mercado de cartões de crédito de pagamento eletrônico no Brasil. Há que se destacar que são fruto de um estudo publicado em maio de 2010, no site do Banco Central do Brasil, intitulado "Relatório sobre a Indústria de Cartões de Pagamento". No trabalho, três órgãos técnicos do governo apresentam análise detalhada sobre parte dos problemas concorrenciais vivenciados nesse setor.

As principais conclusões apontam para problemas estruturais e comportamentais que dificultam a entrada de novas empresas no mercado e que deveriam ser sanados por meio de medidas regulatórias. Os três órgãos sugerem um acompanhamento mais próximo das condutas adotadas pelas empresas no mercado e dos resultados futuros de tarifas e preços.

Sob o ponto de vista estrutural, entendeu-se que o principal problema estaria relacionado ao elevado nível de verticalização do setor (em particular no segmento de credenciamento), que, em conjunto com outros aspectos (efeitos de redes, a exigência de grandes investimentos e ganhos significativos de escala), dificultaria a abertura do mercado para novos credenciadores de estabelecimentos comerciais.

Já sob o aspecto comportamental, concluiu-se que a regra de não sobrepreço (que não permite a distinção entre preço da compra a vista em dinheiro e o preço da compra com cartão), ao contrário do que se imaginaria à primeira vista, traz distorções ao mercado e prejuízo ao consumidor.

Dentre as várias sugestões apontadas no relatório, destaca-se a obrigação da interoperabilidade entre os prestadores de serviços de rede, cuja finalidade será facilitar a entrada de novos credenciadores e evitar a necessidade de que os estabelecimentos comerciais paguem por um número infindável de "maquininhas". Some-se a isso o impedimento de exclusividade contratual na atividade de credenciamento, entre o proprietário da bandeira (Visa, Mastercard, Amex etc.) e credenciador.

Por outro lado, optou-se pela não interferência, mas sim o acompanhamento das regras de acesso impostas pelos proprietários das bandeiras aos emissores e credenciadores e das tarifas de interconexão e taxa de juros. Aliás, quanto a este segundo aspecto, é importante ressaltar que o preço (no caso desse setor, a tarifa de interconexão e a taxa de juros) é apenas um sinal para que os agentes econômicos realizem decisões de alocar seus recursos, e salvo situações extremas nas quais a regulação de preço se faça realmente necessária, qualquer interferência indevida implicaria apenas elevar o grau de ineficiência no mercado. Agir diferente seria o mesmo que colocar gelo no termômetro para baixar a febre. Além de não curar o doente (no caso elevar o nível de concorrência no mercado), poderia apenas postergar decisões de caráter público (ações regulatórias, de defesa da concorrência e do consumidor) imprescindíveis para o adequado funcionamento do setor.

Por fim, no segmento de emissão de cartões de crédito assumiu-se que a concentração estaria correlacionada com a participação das instituições financeiras, que são sócias dos credenciadores únicos de cada bandeira, e com a possibilidade de fusões e incorporações entre os participantes do sistema bancário. A meu ver, esse é exatamente o principal aspecto que não foi esmiuçado ao longo da análise, e que deve ser foco de uma maior preocupação e transparência, para que não se criem falsas expectativas sobre a obrigatoriedade da interoperabilidade entre redes.

Para os comerciantes, além de bem-vindas, as medidas sugeridas poderão melhorar a eficiência econômica e até, indiretamente, beneficiar o consumidor, caso parte da redução dos custos obtida com a interoperabilidade e, eventualmente, com a possibilidade de diferenciar os preços finais ao consumidor nas compras em dinheiro ou em cartão, seja repassada ao consumidor. Note-se que isso será tanto mais verdadeiro quanto mais competitivo for o mercado em que cada comerciante estiver inserido.

Entretanto, sob o ponto da taxa de juros do crédito rotativo, é pouco provável que algo mude. Note-se que essa taxa é definida no mercado financeiro e depende de vários aspectos, tais como da taxa primária de juros (definida pelo governo), do índice de inadimplência, dos impostos pagos em operações financeiras, de outras questões que envolvem a estrutura de custos dessas instituições e, em particular, do nível de concorrência e do grau de transparência a respeito dos serviços prestados ao portador do cartão.

Com relação ao nível de concorrência no setor financeiro, vale lembrar que várias fusões e aquisições têm sido realizadas nos últimos anos sem que os órgãos de defesa da concorrência, ou mesmo o BC, tenha se pronunciado de maneira definitiva e transparente sob a ótica concorrencial. Note-se que uma parte dessa ausência deve-se a um Parecer Jurídico emitido pela Advocacia Geral da União, que impede que a Seae e a SDE se pronunciem sobre este assunto. Não obstante, existe hoje no Congresso Nacional um Projeto de Lei Complementar (PLP 2005/2007), sem andamento processual desde 11/12/2008, que pacifica tal situação e define claramente as competências de cada caso, sob o ponto de vista concorrencial. Já no que diz respeito ao grau de transparência, hoje presente neste segmento de mercado, haveria que se estabelecer regras mais claras e rígidas na relação entre emissores de cartões e clientes, além de impor punições mais críveis e severas pelo descumprimento das mesmas.

A meu ver, é bem provável que, ao se reforçar as ações regulatórias, concorrenciais e de defesa do consumidor no setor financeiro, parte dos resultados positivos seja também incorporado pelo mercado de cartões de crédito.

Cleveland Prates é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica e professor da FGV.