Título: Levando o desarmamento a sério
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 09/08/2010, Opinião, p. A13

As pessoas às vezes se esquecem de que o garoto que gritou lobo acabou sendo devorado. Verdade, ninguém foi morto por arma nuclear desde os ataques a Hiroshima e Nagasaki, há exatos 65 anos nesta semana. Além disso, com as tensões da Guerra Fria já muito distantes no tempo, é fácil para os formuladores de política e o público resistir aos fatalistas, ser complacente com a ameaça que essas armas representam e a encarar as tentativas de eliminá-las, ou de conter a sua disseminação, como bem-intencionadas, mas fúteis.

Mas a verdade é que tem sido a pura e simples sorte - não habilidade política, boa gestão profissional, ou algo inerentemente estável referente aos sistemas de armas nucleares do mundo - o que nos permitiu sobreviver por tanto tempo sem catástrofes. Com 23 mil artefatos nucleares (o equivalente a 150 mil Hiroshimas) ainda existentes, mais de 7 mil deles ativamente posicionados, e mais de 2 mil ainda num perigosamente elevado estado de alerta de lançamento preventivo, não podemos pressupor que nossa sorte se mantenha indefinidamente.

Sabemos agora - com as várias revelações sobre erro humano e falhas de sistemas tanto no lado americano como no russo durante a Guerra Fria e desde então, até os nossos dias - que mesmo os mais sofisticados comandos e sistemas de controle não são infalíveis. Então deveria ser óbvio que a manutenção do status quo é intolerável.

Há também o risco, por vezes exagerado, mas inquestionavelmente não desprezível, de atores terroristas não vinculados a Estados deitarem as suas mãos em armas nucleares ou materiais físseis insuficientemente protegidos e explodirem uma bomba num importante centro populacional. E existe a possibilidade desconcertante de novos protagonistas em energia nuclear civil insistirem em construir suas próprias plantas de enriquecimento de urânio ou de reprocessamento de plutônio, acertadamente descritas como "kits para iniciantes em bombas"

O presidente Barack Obama assumiu o cargo atento a todas essas ameaças e determinado, como nenhum outro presidente dos EUA - e quase nenhum outro líder mundial - a eliminá-las. Sua liderança inspirou esperanças de que mais de uma década de sonambulismo estivesse superada, e apresentou alguns ganhos modestos em relação aos 18 meses passados.

Esses ganhos incluem a conclusão do novo tratado Start entre EUA-Rússia, que reduzirá a quantidade de artefatos estratégicos em estado de prontidão. Mas a ratificação do tratado Start não está nem um pouco acelerada no Senado americano e o progresso em outros temas tem sido lento ou incerto: implantar o Tratado para a Proibição Completa dos Testes Nucleares; começar a negociar um novo tratado para proibir a produção de material físsil para armas nucleares; reforçar o regime de não-proliferação com medidas efetivas para detectar violações e impedir abandonos do tratado; chegar a um entendimento sobre gerenciamento internacional dos aspectos mais sensíveis do ciclo de combustíveis; e, acima de tudo, começar novas rodadas de conversas sobre desarmamento, envolvendo não só as duas superpotências nucleares, mas os oito países nuclearmente armados.

O controle de armas e o desarmamento são um negócio extenuante e modorrento que rende poucos benefícios imediatos. Agora que os temas domésticos e as ansiedades em torno da reeleição dominam a maior parte das agendas políticas, será extremamente fácil que o nível de comprometimento decline. Para evitar essa possibilidade, a manutenção da liderança a partir do topo - sobretudo, por parte de Obama e do presidente russo, Dmitri Medvedev - será indispensável. Há, no entanto, uma série de contribuições importantes que Estados e líderes menos poderosos, bem como organizações da sociedade civil, podem fazer.

A tarefa mais importante é que as pessoas com vozes que inspiram confiança aproveitem todas as oportunidades para diminuir a complacência. As mensagens devem ser implacáveis: as armas nucleares não são as mais desumanas já inventadas, mas são as únicas capazes de destruir a vida sobre este planeta da forma como a conhecemos. O dióxido de carbono também pode nos matar, mas não tão velozmente como bombas.

A segunda tarefa mais importante é estabelecer uma agenda clara de desarmamento global - com objetivos e cronogramas confiáveis. Provavelmente agora será difícil demais fixar uma data limite confiável para chegar direto ao "zero global": restam ainda muitos problemas técnicos de verificação e fiscalização difíceis para serem analisados, assim como os óbvios, de natureza geopolítica e psicológica. Mas não é inconcebível fixar uma data como 2025 como uma meta para minimizar o arsenal nuclear do mundo para menos de 10% do seu tamanho atual, com um número muito pequeno de armas efetivamente mobilizadas, e para seu papel nas doutrinas militares de todos os Estados ser dramaticamente reduzido.

Tampouco é cedo demais para trabalhar em uma nova Convenção de Armas Nucleares que crie uma estrutura viável para negociações multilaterais, e para delinear um mecanismo independente de monitoramento de alto nível que possa detalhar referências claras para progresso, monitorar e criar pressão por mudança.

Todas essas são recomendações da Comissão Internacional para o Desarmamento e a Não-Proliferação Nuclear. No momento em que o mundo comemora o 65º aniversário do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, agora em agosto, precisamos reconhecer que a nossa sorte está acabando - e levá-las a sério.

Gareth Evans é ex-ministro das Relações Exteriores da Austrália e presidente emérito do International Crisis Group, é co-presidente da Comissão Internacional para o Desarmamento e a Não-Proliferação Nuclear e livre docente visitante na Universidade de Melbourne. Copyright: Project Syndicate, 2010.