Título: Todos os olhos voltados para a locomotiva chinesa
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/08/2010, Opinião, p. A14

A notícia de que a China passou à frente do Japão e já é a segunda maior economia mundial, atrás apenas dos Estados Unidos, reacendeu os antigos sentimentos ambíguos em relação ao país.

O mundo deve boa parte da recuperação após a crise financeira internacional à China, com sua incomparável voracidade por matérias-primas. Mas também é intimidado pela máquina de exportação chinesa, que invadiu seus mercados com inofensivas bugigangas de baixa qualidade, de início, e artefatos bem mais sofisticados, posteriormente, beneficiada por um câmbio depreciado e por regras trabalhistas complacentes. As crescentes compras de terras também passaram a incomodar, agora.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) afirma que a China liderou a recuperação mundial. Em 2009, com uma expansão de 9,1%, a China neutralizou a retração de 2,4% dos Estados Unidos e de 4,1% da zona do euro, garantindo que a economia mundial encolhesse apenas 0,6%.

A locomotiva continua puxando um trem relativamente mais leve, ainda carregado de incertezas, especialmente na União Europeia. Recentes previsões do FMI, que constam do World Economic Outlook atualizado em julho, sinalizam para a zona do euro crescimento de 1% neste ano; de 3,3% para os Estados Unidos; e de 7,1% para o Brasil.

Com esse desempenho, não é propriamente uma surpresa que a China tenha se tornado a segunda maior economia mundial, como deixou escapar o vice-presidente do Banco do Povo (o banco central chinês), Yi Gang, na semana passada. Até mesmo porque o Japão caminhou no sentido contrário. O Produto Interno Bruto (PIB) japonês despencou 5,2% em 2009 e deve estar ao redor de US$ 5,2 trilhões, mesmo crescendo 2,5% neste ano, como prevê o FMI. Já o PIB chinês atingiu US$ 5,4 trilhões.

No cenário de desaceleração global previsto para 2011, a China ainda contará com números vibrantes: um crescimento de 9,6%, mais do que o dobro dos 4,3% previstos para a economia mundial, de acordo com o Fundo. Os Estados Unidos devem crescer 2,9%; a zona do euro, 1,3%; o Japão, 1,8%; e o Brasil, 4,2%.

Mas até mesmo as pedras da Grande Muralha sabem que é impossível crescer indefinidamente em um mercado global ainda patinando. A insegurança na Europa, mais visível a partir do segundo semestre, já está afetando a Ásia pelos canais comerciais e de crédito. Não é por outro motivo que, apenas alguns dias depois da entrevista orgulhosa de Yi Gang, foi divulgado que a atividade industrial da China cresceu em julho no ritmo mais lento em 17 meses. O índice dos gerentes de compras da indústria caiu de 52,1 pontos em junho para 51,2 pontos em julho. O índice é elaborado a partir de dados de 730 empresas de 20 segmentos da indústria. Qualquer número acima de 50 indica expansão do setor, mas esse foi o resultado mais fraco desde março de 2009, quando a indústria chinesa saía da crise global.

A desaceleração chinesa também é resultado do desmonte das medidas expansionistas tomadas pelo governo nas áreas fiscal e monetária no auge da crise. Incentivos fiscais estão sendo retirados e o crédito foi contido. As novas concessões de crédito deste ano foram limitadas em 7,5 trilhões de yuans (US$ 1,1 trilhão). O governo teme mais uma bolha na área imobiliária do que a alta da inflação, que deve ficar ao redor de 3%.

O desafio da China é calibrar a desativação dos instrumentos anticrise, o que é especialmente preocupante em um contexto de incerteza global; e levar adiante uma extensa agenda de reformas necessárias para tornar o consumo interno o motor do crescimento nos próximos anos. A demanda doméstica chinesa vem crescendo mais do que o PIB total desde a crise, com 9,7% em 2008, 14,8% em 2009 e 11,5% neste ano. Há muito espaço para ocupar no mercado interno de 1,3 bilhão de habitantes, com uma renda per capita de US$ 3.677.

Com um mercado interno mais dinâmico, a China poderia reavaliar seu comportamento no comércio internacional. Parte dessa equação passa pela política cambial. Pressionado pelo mundo, o governo chinês cedeu e deixou o câmbio atrelado ao dólar, em junho, adotando uma taxa de câmbio referenciada em uma cesta de moedas. Nesse regime, a moeda chinesa pode se mover diariamente 0,5% abaixo ou acima da paridade fixada na abertura do mercado.

Na época, chegou-se a dizer que a China apenas queria captar na taxa a depreciação que o euro vinha sofrendo. Esses críticos podem ter razão porque, depois de ter subido pouco menos de 1% nas duas semanas após a mudança cambial, o yuan praticamente não se mexeu.