Título: Teste para a estabilidade dos EUA
Autor: Viñals , José
Fonte: Valor Econômico, 16/08/2010, Opinião, p. A13

O verdadeiro teste dos EUA será a forma como as recentes reformas serão instituídas domesticamente e como serão coordenadas internacionalmente

Uma lei de reforma financeira de grande abrangência acaba de ser aprovada nos Estados Unidos - uma resposta histórica à crise financeira mais devastadora em décadas, que dá passos importantes e bem-vindos para abordar os muitos pontos fracos revelados pela crise no sistema financeiro e regulador do país.

Enquanto o governo Obama e o Congresso dos EUA extraíam lições da crise e deliberavam sobre as reformas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) também avaliava o sistema financeiro dos EUA por meio do Programa de Avaliação do Setor Financeiro (FSAP, na sigla em inglês). O FSAP foi criado na esteira da crise asiática de meados dos anos 90, para permitir uma avaliação objetiva das forças e vulnerabilidades dos sistemas financeiros dos países, inclusive para determinar em que ponto estão em relação aos padrões internacionais. A recente crise levou o G-20 a reafirmar a importância das revisões feitas pelo FSAP para os esforços de promoção da estabilidade mundial, tendo até comprometido seus membros a passar por essas análises regularmente.

Então, com os EUA agora tendo realizado esse exame, qual a percepção sobre a saúde do sistema financeiro do país e as recentes reformas na regulamentação?

A revisão contém muitas conclusões positivas. Elogia as autoridades dos EUA por suas decisões ousadas e decisivas para conter o risco de colapso sistêmico durante um período de extrema agitação dos mercados. Embora a crise tenha imposto custos devastadores, nacional e internacionalmente, os erros que levaram à Grande Depressão parecem ter sido evitados.

As autoridades americanas também agiram com rapidez para apresentar a lei de reforma, que aborda as debilidades que levaram à crise. A aprovação da lei Dodd-Frank pelo Congresso representa um marco significativo na reforma do setor financeiro dos Estados Unidos. Pela nova lei, estabeleceu-se um novo órgão regulador do risco sistêmico, fortaleceu-se a fiscalização do setor bancário "paralelo" e criaram-se novos mecanismos para lidar com a quebra de instituições não bancárias sistemicamente importantes.

Essas reformas tornam possível a criação das fundações para um sistema financeiro mais sólido e seguro. Ainda assim, a revisão do FSAP enfatiza que o trabalho ainda não acabou e que há tarefas cruciais por realizar.

Primeira tarefa: embora a estabilidade financeira tenha sido restaurada de forma generalizada e o capital dos bancos reforçado de forma significativa como resultado dos "testes de estresse" de 2009, ainda há focos de debilidade significativos. Isso porque, mesmo que o crescimento mantenha o atual ritmo, será necessário mais capital, especialmente para os bancos pequenos e médios.

Essas necessidades parecem ser administráveis, mas os recentes acontecimentos na Europa e os últimos dados econômicos dos EUA servem para lembrar-nos que a recuperação e a confiança continuam frágeis, especialmente dentro de um cenário de alto endividamento público. Em caso de enfraquecimento da economia, a necessidade por capital adicional para os bancos poderia ser substancial.

Segunda tarefa: a lei Dodd-Frank é um passo imenso em direção à melhora na regulamentação das instituições financeiras, tanto isoladamente quanto do sistema como um todo. Mas perdeu a oportunidade de tornar as agências de supervisão mais ágeis, ao não deixar claro se foram resolvidos os conflitos que contribuíram para a crise, sobre o poder de alcance e as velhas lacunas desses órgãos. A lei serve de esqueleto para a nova arquitetura de regulamentação. Caberá ao novo Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira agregar os músculos fiscalizadores a esses ossos: melhorar a cooperação entre as agências, tornar mais rigorosas as leis que regem instituições de importância sistêmica e reagir com rapidez e rigor aos riscos sistêmicos.

Terceira tarefa: reduzir os riscos sistêmicos exige ações determinadas para garantir que as instituições financeiras não sejam grandes demais para falir. A nova lei dá passos importantes nessa direção, requerendo capital adicional e outros encargos proporcionais a seus riscos sistêmicos, exigindo que as empresas sistemicamente importantes preparem "testamentos vitais" para que possam ser fechadas com facilidade e criando um esquema especial de resoluções para o caso de quebras. Essas medidas, contudo, não podem ser substitutas de uma supervisão forte e preventiva; regras e regulamentações não podem ser substitutas da "vontade de agir".

Quarta tarefa: a reforma do financiamento imobiliário nos EUA continua inacabada. As políticas públicas de subsídio aos créditos hipotecários nos EUA foram custosas, ineficientes e encorajaram a assunção excessiva de riscos, o que ajudou a empurrar o sistema em direção à crise. Propostas concretas para resolver essa situação estão sendo formuladas agora, mas não se pode dizer que o sistema financeiro foi reparado sem uma solução decisiva para as agências hipotecárias [sob licença do governo] dos EUA e cortes significativos dos subsídios dos EUA para as captações hipotecárias.

Em resumo, as autoridades dos EUA avançaram muito para fortalecer o setor financeiro. Sua participação na avaliação do FSAP - e seu acordo para divulgar os resultados - atesta seu compromisso com os esforços mundiais para assegurar que a crise dos últimos três anos não se repita. O verdadeiro teste, no entanto, será a forma como as recentes reformas serão instituídas domesticamente e como serão coordenadas internacionalmente.

José Viñals é conselheiro financeiro e diretor do departamento de Mercado de Capitais do FMI. Copyright: Project Syndicate, 2010.