Título: Governo terá maior poder desde a Grande Depressão
Autor: Paletta , Damian
Fonte: Valor Econômico, 16/07/2010, Finanças, p. C8

O Congresso dos Estados Unidos aprovou uma abrangente reforma de regras que tocam em todos os cantos do mundo financeiro, do caixa eletrônico aos operadores de Wall Street. É a maior expansão do poder público sobre os bancos e mercados desde a Grande Depressão, na década de 1930. O projeto de lei, que será sancionado em breve pelo presidente Barack Obama, representa um potencial divisor de águas para a indústria financeira. Titãs financeiros como o J.P. Morgan Chase & Co., o Goldman Sachs Group Inc. e o Bank of America Corp. podem ser forçados a fazer mudanças em quase todas as áreas dos seus negócios, dos cartões de débito à negociação de derivativos e à capacidade de investir em fundos de hedge.

O Senado aprovou o projeto ontem com 60 votos a favor e 39 contra, depois do sinal verde dado pela Câmara de Deputados no mês passado. Antes da aprovação no Senado, três senadores do Partido Republicano, de oposição, se uniram a dois do Partido Democrata, de Obama, para barrar uma obstrução, permitindo que o projeto passasse por pouco.

A lei vai colocar nas mãos de dez agências reguladoras o direito de escrever centenas de novas regras para o setor financeiro. Em vez do projeto de lei em si, será esse processo - acompanhado por uma campanha de lobby dos bancos - que vai determinar os contornos precisos do novo cenário, quão duras serão as novas regras e se elas serão bem-sucedidas em suas propostas. As decisões serão tomadas por autoridades de novas agências, agências obscuras e, em alguns casos, agências que falharam durante o desenrolar da crise financeira.

A Comissão de Negociação de Futuros de Commodities escolheu 30 líderes de grupos para começar a implementar sua nova e vasta autoridade sobre derivativos e já pediu US$ 45 milhões para novos funcionários. O Federal Reserve, banco central dos EUA, a Federal Deposit Insurance Corp., agência de seguro-depósito, e a SEC, comissão de valores mobiliários, também estão tomando medidas para começar a implementação. O J.P. Morgan Chase, um dos maiores bancos dos Estados Unidos, designou mais de 100 equipes para examinar partes da nova lei.

Os democratas dizem que o projeto de lei vai reduzir as chances de uma outra crise financeira e lidar melhor com os problemas quando ela surgir. Eles também argumentam que a lei vai restaurar a confiança no mercado financeiro dos EUA, proteger as pessoas físicas e estimular o crescimento econômico. Autoridades da Casa Branca dizem que a lei vai colocar um fim nos resgates de bancos financiados com dinheiro do contribuinte e sanar as cicatrizes da crise financeira de 2008.

A legislação cria um conselho de reguladores para monitorar os riscos econômicos, estabelece uma nova agência para policiar os produtos financeiros de varejo e define novos padrões para a negociação de derivativos. "Essas reformas vão beneficiar o prudente e limitar o imprudente", disse o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, numa coletiva de imprensa. "Bancos sólidos, os bem geridos inovadores financeiros, vão se adaptar e crescer sob as novas regras do caminho."

Os republicanos dizem que o projeto de lei pode colocar em risco a recuperação econômica, ao limitar o crédito e prejudicar a indústria bancária, e também criticam a ampliação dos poderes do governo que ela representa.

O projeto "é um monstro financeiro de 2.300 páginas (...) que expande o escopo e os poderes de burocracias ineficazes", disse o senador Richard Shelby.

Essa é a mais nova legislação abrangente a sair do 111º Congresso dos EUA. Mas a revisão das regras financeiras, o estímulo de 2009 e a reforma do sistema de saúde - feitos legislativos expressivos, por qualquer medida - não se traduziram em apoio para a Casa Branca. Os índices de aprovação de Obama caíram para os níveis mais baixos já registrados nas pesquisas de opinião, em meio a um cenário econômico nebuloso e dúvidas sobre a eficácia das políticas econômicas do presidente.

Uma vez que o projeto seja sancionado em lei, os legisladores e o governo Obama devem se voltar para questões potencialmente mais contenciosas: o futuro das agências de crédito imobiliário patrocinadas pelo governo, a Fannie Mae e a Freddie Mac. Muitos republicanos reclamam que o fracasso em resolver os problemas dessas companhias no projeto de lei foi uma evidente omissão. O governo já começou a trabalhar em uma proposta para redesenhar o sistema de financiamento imobiliário e o Congresso poderia debater o assunto em 2011.

A nova lei será colocada em vigor num ambiente volátil. Os lucros em Wall Street estão subindo rapidamente. O J.P. Morgan anunciou lucro líquido de US$ 4,8 bilhões no segundo trimestre. Mas o setor bancário está se contraindo. Quase 300 bancos quebraram desde janeiro de 2008. Muitas empresas e tomadores de empréstimos estão tendo dificuldade para conseguir crédito. Defensores e críticos concordam que o impacto do projeto de lei será determinado ao longo de vários anos, dependendo em grande parte de decisões tomadas pelos reguladores.

A aprovação da lei "é o começo do processo e não o fim", diz Satish Kini, um dos presidentes da área de bancos do escritório de advocacia Debevoise & Plimpton LLP. "O contorno da reforma não será conhecido até que os reguladores falem." Autoridades do Departamento do Tesouro dos EUA já deram os passos iniciais para estabelecer as bases para a nova agência de proteção financeira à pessoa física. Eles também estão criando uma estrutura para que empresas financeiras grandes, complexas e à beira da falência possam ser desmembradas e liquidadas sem atrapalhar os mercados.

Apesar de criar a nova agência de fiscalização na área de pessoas físicas, o projeto deixa a colcha de retalhos que forma o sistema regulatório americano praticamente intacta, e a maioria dos participantes será conhecida. Isso aborreceu os críticos de direita e esquerda que dizem que uma das principais falhas do projeto de lei é que ele se apoia no julgamento das autoridades mais do que em regras rígidas.

Os liberais temem que os reguladores venham a controlar a indústria financeira. Os de esquerda temem que eles sejam cooptados pelos lobistas dos bancos. "Os mesmos reguladores que ignoraram os alertas dos defensores dos consumidores sobre o crédito predatório terão poder de veto na agência do consumidor", disse John Tayler, presidente da Coalizão Nacional da Comunidade de Reinvestimento. "Aquele clube de reguladores é bem insular e normalmente está de acordo."

Em um sinal do desafio pela frente, em uma audiência pública ontem para aprovar sua indicação como vice-presidente do conselho do Fed, Janet Yellen admitiu que a abordagem regulatória do Fed foi insuficiente por muitos anos. "Fomos completamente incapazes de entender a complexidade do impacto que a queda nacional dos preços das moradias teria sobre o sistema financeiro", disse Yellen, que atualmente é presidente do Fed de San Francisco. "Nós vimos várias coisas diferentes mas não conseguimos unir os pontos."

Os reguladores terão várias questões para responder. Que tipo de operações os bancos podem fazer e quais serão ilegais? Em que nível os reguladores devem limitar as tarifas que os varejistas pagam aos bancos para processamento das transações de cartões de débito? Sobre que empresas o Fed vai impor regras mais rígidas? Quais serão os novos padrões para os financiamentos imobiliários, cartões de crédito e tarifas para saques em caixas eletrônicos?

Dentro de um ano, os reguladores poderão ter várias respostas. A nova agência de proteção à pessoa física deve ser estabelecida com seu próprio quadro de funcionários e diretor. Um novo conselho de reguladores vai monitorar o surgimento de riscos à economia. Vai haver novas regras para os pacotes de benefícios de rescisão de funcionários de empresas privadas, políticas para os cartões de caixas eletrônicos, a eliminação do Escritório de Supervisão Econômica, novas regras para os derivativos e registro dos fundos de hedge.

Autoridades do governo e legisladores têm conversado sobre quem deve dirigir a agência de proteção à pessoa física, assim como quem apontar para a posição de regulador chefe dos bancos. Os bancos começaram a procurar os reguladores meses atrás. O francês BNP Paribas organizou um jantar no restaurante Le Bernadin, em Nova York, no qual os investidores questionaram o presidente do Fed de Nova York sobre como as regras para os derivativos serão aplicadas.

No jantar, alguns participantes disseram a Patricia Mosser, a autoridade do Fed presente, que não queriam ver muita mudança no atual modelo de negociação de derivativos. Mosser disse que levar mais derivativos para as bolsas, como prevê a lei, tornaria o mercado mais transparente e seguro, disseram pessoas a par do assunto. Ainda assim, ficou claro que as regras não serão colocadas em prática da noite para o dia. A lei vai demorar meses, talvez anos para ser colocada em prática, disse Mosser ao grupo.