Título: Capitanias hereditárias
Autor: Felício , César
Fonte: Valor Econômico, 20/08/2010, Cultura, p. 8

Em 1982, momento em que o Brasil se a abria para a fase democrática atual, Álvaro Dias, um jovem deputado federal paranaense, ex-radialista em Londrina (PR), batia nas urnas para o Senado no Paraná uma lenda no Estado: o duas vezes ex-governador e duas vezes ex-ministro Ney Braga (1917-2000). As eleições daquele ano, as primeiras com voto direto para governador e pluripartidárias, foram um marco da virada de página não só no Paraná mas em todo o país. No último dia 8 de março, o hoje senador Álvaro Dias (PSDB-PR) levou ao altar a filha Carolina para se casar com Pedro Braga Maia, neto de Ney Braga.

A ocasião social foi um símbolo de um traço marcante na tradição política brasileira: o entrelaçamento familiar entre descendentes de autoridades no meio eleitoral, empresarial e eclesiástico que sedimentam uma elite.

"Em alguns momentos de mudança, como foram os anos 1980, abre-se uma porta para a mobilidade que permite a entrada de novos atores. Mas logo essa porta se estreita e o patrimônio político passa a ser transmitido por herança, assim como o patrimônio financeiro e empresarial", comentou o cientista político Ricardo Costa de Oliveira, professor de sociologia da Universidade Federal do Paraná.

O tema é seu objeto de pesquisa permanente e a genealogia, um hobby pessoal. O autor de "O Silêncio dos Vencedores: Genealogia, Classe Dominante e Estado no Paraná" afirma ter descoberto relações de parentesco com o duque de Caxias ( 1803-1880).

O Paraná é o exemplo mais drástico da cristalização de uma elite política nas eleições atuais. Todos os candidatos a cargos majoritários, sem exceção, possuem relação de parentesco ilustre. E entre os deputados estaduais eleitos para primeiro mandato em 2006, 100% tinham o laço familiar como a principal explicação para a vitória.

Há gradações na influência familiar nesse cenário. Os candidatos paranaenses ao governo e ao Senado devem suas atuais candidaturas aos cargos e funções que exerceram imediatamente antes do momento eleitoral. O candidato do PMDB ao Senado, Roberto Requião, por exemplo, já foi governador duas vezes e o candidato do PSDB ao governo, Beto Richa, acabou de deixar a Prefeitura de Curitiba. "A questão é a porta de entrada. Para se concorrer a uma eleição majoritária, há uma série de etapas a serem cumpridas, mas só entra no jogo quem já estava dentro antes de ele começar", disse Oliveira.

O fator familiar está disseminado em todos os Estados. Na eleição de 2006, 95 dos deputados federais eleitos contavam com algum laço familiar com figura pública em primeiro grau. Entre os atuais parlamentares, há remanescentes de famílias que foram influentes no Império, como Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), da sétima geração dos descendentes de José Bonifácio, o Patriarca da Independência, e Aline Corrêa (PP-SP), filha do ex-deputado Pedro Corrêa , cassado durante o escândalo do mensalão, e descendente do conselheiro João Alfredo, o penúltimo primeiro-ministro do Segundo Reinado.

Proporcionalmente, o peso familiar sobressai entre os senadores e os governadores. Contavam com vinculo familiar importante 28 dos 81 senadores da legislatura que se iniciou em 2007 e 10 dos 27 governadores eleitos em 2006. Nem sempre o passado político do ascendente , contudo, é o fator mais importante.

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), por exemplo, dificilmente teria tido a trajetória que o levou duas vezes a ser governador do Ceará se não fosse filho do antigo senador Carlos Jereissati. Mas isso não se deu pelo fato de o pai também ter sido parlamentar: Carlos Jereissati, que morreu poucos meses depois de assumir o mandato, em 1963, foi um poderoso dirigente do setor têxtil, o que garantiu a projeção do filho no meio empresarial e o levou a ter atuação política nos anos 1980.

A relação não é tão direta quando se trata da eleição presidencial. Dos principais candidatos à Presidência, apenas em relação à petista Dilma Rousseff seria possível relacionar o início de sua trajetória pública ao fato de ter sido casada com um antigo deputado federal pelo PDT, Carlos Araújo, entre as décadas de 1970 e 1980. Mas ela já era militante política antes disso. O tucano José Serra e a senadora Marina Silva (PV-AC) não contam com parentes importantes.

Da mesma forma, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente José Alencar Gomes da Silva não contavam com relações políticas. Ainda que no caso de Lula tenha sido crucial para a sua entrada na vida sindical o fato de ser irmão de José Ferreira da Silva, o Frei Chico, que era integrante do PCB nos anos 1970.

Entre os últimos presidentes, esse fator não distingue entre os que se elegeram democraticamente e os que governaram no regime militar. Contavam com parentes políticos Fernando Henrique Cardoso ( filho de um ex-deputado federal), Fernando Collor de Mello (filho de um ex-governador) e João Figueiredo (herdeiro de uma dinastia de militares e filho de ex-deputado). Também é o caso de Arthur da Costa e Silva ( sobrinho de um ex-ministro da Justiça) e Humberto Castello Branco (da família do escritor e político José de Alencar). Patriarca de uma oligarquia, José Sarney é filho de um desembargador. De origem humilde foram apenas Itamar Franco , Ernesto Geisel e Emilio Médici.

O peso da tradição familiar diminui em estados como São Paulo, ainda que o candidato tucano a governador Geraldo Alckmin seja sobrinho de um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral e o petista Aloizio Mercadante, filho de um ex- comandante da Escola Superior de Guerra, ou no Rio de Janeiro, em que pese o ex-governador Anthony Garotinho ter sido sucedido por sua mulher, Rosinha, e o ex-prefeito César Maia ter um filho deputado.

" Em estados com maior intensidade de competição política, outros fatores ganham relevância depois de 1930, como a força das máquinas partidárias, a tecnocracia da administração pública e o impulso dos movimentos sociais", comentou o cientista político Claudio Couto, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo no curso de gestão pública.

Couto ressalta que a tradição familiar é um elemento estrutural para a divisão de papéis na sociedade. "Isso não distingue a classe política das demais e nem o Brasil de outros países. Existe esse tipo de transmissão até na música e há casos célebres em outros países, como os das famílias Kennedy, Bush e Clinton nos Estados Unidos."

Há uma linha tênue que separa a influência familiar de ser um fator secundário ou primordial em uma carreira política. Deputado federal em Minas Gerais e candidato a suplente de senador, o petista Virgílio Guimarães não atribui seu ingresso na política ao fato de ser filho de Evaristo de Paula, ex-prefeito de Curvelo, no norte de Minas. Seu avô materno foi senador estadual, cargo que existia na República Velha, e seu tio, João Herculino, deputado federal e empresário.

"No meu caso , foi coincidência. Comecei na política militando no PT , de maneira oposta a tudo que meu pai fez. Ele era da UDN. Tenho imenso orgulho dele, mas esse fator não colaborava para ascensão política dentro da esquerda. Já em relação ao meu filho Gabriel, não é coincidência. Ele nasceu dentro do PT. Conheci a mãe dele no partido", afirmou Virgílio, referindo-se ao filho, o advogado Gabriel Guimarães, que é candidato a deputado federal. Virgílio disse que não está fazendo campanha pelo filho e que a candidatura foi uma iniciativa de Gabriel. "Ele é meu filho, não o meu clone."

A preocupação de Virgílio em deixar claro que não atua para o filho não é receio com possíveis danos em sua imagem ou na de Gabriel, mas tem raiz política: o eventual favorecimento de Gabriel teria péssima repercussão entre os demais candidatos a deputado federal pelo PT, que poderiam se afastar de pai e filho. "Ele está em uma chapa majoritária e qualquer movimento dele poderia indicar um favorecimento que não é correto", afirmou Gabriel.

Advogado, com 27 anos, Gabriel tenta resgatar o patrimônio eleitoral de Virgílio , que caiu de 207 mil votos em 2002 para 101 mil em 2006. "Na eleição de 2002 houve uma onda vermelha em Minas e todos os candidatos do PT foram beneficiados. Em 2006 essa onda refluiu", explicou Virgílio. Gabriel prefere não arriscar projeção de votos este ano.

Virgilio Guimarães não é o único caso de transmissão de mando de uma velha geração petista para outra mais nova. Talvez não por coincidência, no próprio Paraná há outro exemplo: José Carlos Becker, ex-prefeito de Cruzeiro do Oeste, na região norte do Estado, também disputa um mandato na Câmara. Ele é filho do ex-ministro da Casa Civil e ex-deputado José Dirceu, que teve o mandato cassado em 2005, como decorrência do escândalo do mensalão.