Título: Que agricultura familiar?
Autor: Buainain, Antônio M.
Fonte: Valor Econômico, 25/08/2010, Opinião, p. A11

A criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1996, foi resultado de luta política liderada pela Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura (Contag) em favor da inclusão dos pequenos produtores nas políticas agrícolas. De fato, em que pesem as disposições especiais em favor dos micro e pequenos, definidos pela área e nível de renda, vários estudos confirmavam as dificuldades de acesso desse segmento às políticas de crédito rural, de garantia de preços mínimos e de promoção da inovação tecnológica. O desenho e a operacionalização de um programa especial voltado para a agricultura familiar, como o Pronaf, exigiam uma definição clara tanto dos beneficiários como dos critérios objetivos para identificá-los.

Aos poucos o termo agricultura familiar foi se afirmando e passou a expressar, genericamente, o pequeno produtor, com todos os equívocos empíricos e conceituais associados a essa classificação, entre os quais destacamos alguns: 1) a identificação de pequeno com a área do estabelecimento, sem referência à capacidade de produção e ao fato de que em várias atividades é possível ser até muito grande em termos de produção e capital empregado e utilizar uma área de terra pequena; 2) a identificação do pequeno com a produção de alimentos básicos para o mercado interno, reproduzindo a segmentação equivocada entre mercado doméstico e externo, sem levar em conta a participação dos ditos pequenos na produção de vários produtos de exportação, como a própria soja, e de produtos não alimentares, como o tabaco, ambos no Sul do país; ademais, tampouco se considerava as então já evidentes mudanças na cesta de consumo alimentar do brasileiro; e 3) identificação do agricultor familiar com uma lógica produtiva dominada pela produção para subsistência e venda ocasional de excedentes.

Em 2000, participamos da realização do estudo "Novo Retrato da Agricultura Familiar", que mostrou a importância da contribuição da agricultura familiar para o desenvolvimento do país. O conceito e a delimitação da agricultura familiar então adotado procuravam aliar a ideia de uma agricultura sob gestão da própria família - que nos parece o traço essencial, talvez único, que a distingue da empresa capitalista - com a disponibilidade de informações do IBGE que permitisse fazer os cortes empíricos necessários para a focalização e operacionalização do Pronaf. Naquela concepção, a agricultura familiar aproxima-se da "family farm" dos EUA e do agricultor familiar europeu, que não são necessariamente pequenos, mas onde a família realiza a gestão do empreendimento e não administradores contratados.

Independentemente das intenções dos formuladores da política e das polêmicas, sempre intensas, sobre o conceito de agricultura familiar e sobre a melhor maneira para identificá-la, o fato é que a agricultura familiar adquiriu um status político próprio que se refletiu no recorte do que seria o universo da agricultura familiar.

Na prática, abandonou-se a tentativa de identificar categorias consistentes de agricultores a partir da forma e particularidades de organização da produção em favor de uma agricultura familiar construída politicamente. É nesse contexto que emerge a oposição entre agricultura familiar e agronegócio, bastante difundida nos últimos anos, e que chegou a ser objeto até mesmo de polêmicas entre os ministros da agricultura e do desenvolvimento agrário. Nada melhor que um inimigo externo, ainda que inventado, para criar coesão interna e fortalecer politicamente um grupo que é marcado por profunda diferenciação.

Temos insistido que essa falsa dicotomia de fundo maniqueísta, que procura difundir a imagem de um agricultor do bem e outro do mal, de um pequeno e cuidadoso com o ambiente em oposição a outro latifundiário, escravocrata e destruidor da natureza, não corresponde à realidade e em nada contribui para promover o desenvolvimento rural sustentável. Ao contrário, tem prejudicado em particular os resultados das políticas fundiárias precisamente por isolar os assentados das cadeias produtivas mais dinâmicas e dificultado a aplicação de políticas de transformação produtiva e integração comercial que são a base da experiência desenvolvimentista bem sucedida, no Brasil e em qualquer outro país.

O estudo "Novo Retrato da Agricultura Familiar" mostrava que a gestão familiar e a predominância do trabalho familiar são os traços unificadores de um universo extremamente heterogêneo - dividido nos grupos A, B, C e D, segundo o nível de renda -, que incluía desde milhões de produtores minifundiários muito pobres e pobres (Grupo D), até um grupo de produtores capitalizados (Grupo A), produzindo de forma integrada às cadeias produtivas mais dinâmicas, com produtividade elevada e nível de renda sustentável. Segundo aquela metodologia, a agricultura familiar era responsável por 37,9% do Valor Bruto da Produção (VBP) da agricultura e o grupo A por 50% da produção familiar. A reaplicação dessa mesma metodologia para o Censo de 2006 revela um aumento da participação da agricultura familiar no VBP agropecuário, de 37,9% para 40% entre 1996-2006, e a elevação da participação do Grupo A- que está integrado às cadeias dinâmicas da agricultura brasileira - de 50% para 67% do VBP da agricultura familiar. Confirma, portanto, sua heterogeneidade e a artificialidade da tentativa de dividir politicamente os agricultores brasileiros em dois grupos antagônicos.

Antônio M. Buainain é professor livre docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultor do convênio NEAD/IICA/UFF. (buainain@eco.unicamp.br)

Alberto Di Sabbato é professor associado I da Faculdade de Economia/UFF e consultor do convênio NEAD/IICA/UFF. (alberto@economia.uff.br)

Carlos E. Guanziroli é professor associado II da Faculdade de Economia/UFF e consultor do convênio NEAD/IICA/UFF. (guanzi@ism.com.br)