Título: As rachaduras no G-20
Autor: Solana , Javier
Fonte: Valor Econômico, 10/09/2010, Opinião, p. A13

A crise financeira mundial tem servido de catalisador rápido e eficiente para o G-20. As três primeiras cúpulas do G-20 reunindo chefes de Estado em Washington, Londres e Pittsburgh serão lembradas por terem feito avançar o multilateralismo e ações coordenadas em nível mundial. Mas o G-20 continua a ser muito mais uma obra em progresso - e uma iniciativa que precisa trabalhar muito para ter sucesso, conforme demonstrado em sua cúpula em Toronto.

O encontro em Washington, em 2008, foi o primeiro em que os chefes de Estado dos países membros reuniram-se desde a criação do grupo em 1997. O G-8 já não era um veículo adequado à governança econômica mundial, dada a necessidade de estabilizar os mercados financeiros em todo o mundo. As vozes de países como a China, Índia e Brasil tiveram que ser ouvidas, para que uma resposta coordenada à crise pudesse ser encontrada. Com o agravamento da crise financeira, a cúpula de Londres em 2009 concordou com um estímulo fiscal e monetário sem precedentes e apoiou um referencial regulamentar e de supervisão mais forte e mais coerente em nível mundial. Em vista do êxito do G-20, a cúpula de Pittsburgh considerou-o como principal fórum de cooperação econômica internacional.

Esse reconhecimento aumentou as expectativas em relação ao G-20 e atribuiu-lhe o prestígio que merecia: é o único fórum onde as potências mundiais e os países emergentes sentam-se em torno de uma mesma mesa como iguais. A premissa é clara: a crise tornou evidente que a interdependência entre os países é inevitável. Diante dos desafios no mundo de hoje, a única resposta possível tem de ser mundial. Não há alternativa possível. Mas a imprecisão dos acordos alcançados na Cúpula de Toronto em junho deixou os líderes políticos com um gosto amargo na boca.

Duas lacunas claramente definidas destacam-se como causas de discórdia. A primeira é a divergência transatlântica sobre o melhor modo de assegurar um retorno a sólido crescimento. Os EUA continuam favoráveis a estímulo econômico, enquanto a União Europeia prefere consolidação orçamentária. A outra fonte de dissensão é a falta de acordo sobre um imposto para o setor bancário. Os EUA, a UE e o Japão são a favor, ao passo que os países emergentes, assim como o Canadá e a Austrália, se opõem.

Embora tenha sido alcançado um acordo (2013 foi definido como o ano quando os déficits orçamentários terão sido reduzidos à metade; e 2016 para estabilização da dívida soberana), o consenso não está indo na direção certa. Não é uma questão de estímulo versus déficit. Ambos são necessários. Mesmo respeitando as particularidades de cada contexto, existe ainda terreno comum suficiente para maior precisão nos acordos. O mesmo pode ser dito sobre a questão da transparência, prestação de contas e regulamentação do imposto bancário. Sei muito bem que essa não é uma tarefa fácil, mas é essencial para os líderes mundiais - e não para os mercados - liderarem o esforço por reformas.

Além disso, há um costume que tem se repetido e que precisa ser mudado. Obviamente, realizar uma cúpula do G-8 antes de uma cúpula do G-20, como aconteceu no Canadá em junho deste ano, serve apenas para prolongar a manutenção de clubes distintos, o que é insustentável. O papel do G-20 deveria crescer ainda mais em importância, devido à participação dos países emergentes no PIB mundial - cujas projeções apontam para 60% em 2030 - e para a natureza mundial dos desafios do século XXI. Se quisermos progredir no enfrentamento dos problemas de governança mundial, teremos de trabalhar juntos para superar essa crise econômica e outras questões essenciais, como a não proliferação nuclear.

O problema é que apesar da evidente necessidade de multilateralismo há um risco de recaída no bilateralismo, devido à falta de liderança mundial. A atenção do presidente americano Barack Obama está centrada em questões de grande importância, como o Oriente Médio, sua nova estratégia para o Afeganistão e a cambaleante economia americana. O mesmo vale para a UE, onde a atenção - e as ações - têm-se concentrado, nos últimos meses, na defesa do euro e na resolução das dificuldades econômicas na periferia da União Europeia.

Por seu turno, as potências emergentes continuam inclinadas para o bilateralismo e a alinhar-se com outros países. A inexistência de acordo em torno da resolução do Conselho de Segurança da ONU contra o Irã também não contribui para coordenação e cooperação no âmbito do G-20.

As cúpulas devem ser bem preparados e constituir um fórum de debate para as grandes questões mundiais atuais. Propostas concretas coerentes e bem definidas produziriam resultados mais aceitáveis para todos. Mas tão importante como a tomada de decisões é explicá-las bem. A cúpula do G-20 não é algo que acontece todos os dias. É um evento mundial. Especialmente em um momento de crise que tem causado tanto sofrimento, as decisões do G-20 devem ser explicadas ao público de forma clara e sem cacofonia. A angústia das pessoas exige esse esforço, e ele esteve ausente em Toronto.

O mundo permanece em uma fase de transição muito delicada, e ainda não está claro para qual direção o G-20 se inclinará. O principal desafio agora é continuar utilizando "a geometria dos 20" para construir instrumentos de governança mundial. Embora a tempestade econômica tenha ficado menos intensa, ainda não amainou. Por isso, ainda há muito a fazer. Estando os países a caminho do crescimento em diferentes velocidades, a estratégia mundial precisa continuar sendo uma prioridade.

O grau de interdependência dos países está crescendo e a natureza mundial dos nossos problemas é intrínseca. No âmbito do multilateralismo, os países devem fazer um esforço para amenizar as suas diferenças e aprofundar seus relacionamentos: temos de vencer a inércia que nos faz tender para velhas maneiras de pensar - e para velhas alianças.

Javier Solana ex-alto representante para Política Externa e de Segurança da União Europeia, e ex-secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), é presidente do ESADE Center for Global Economy and Geopolitics.