Título: Indústria brasileira resiste a acordo com UE
Autor: Leo, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2010, Brasil, p. A3

De Brasília

Otimista, a ponto de anunciar a intenção de fechar um acordo entre Mercosul e União Europeia (UE) até meados de 2011, o comissário europeu para o Comércio, Karel De Gucht, encontrou um inesperado obstáculo ontem, em visita ao Brasil: os empresários brasileiros, preocupados com a incerteza na Europa e com obstáculos à competitividade do setor privado no Brasil, querem desacelerar os acordos comerciais. Representantes da indústria participaram ontem de jantar com De Gucht, na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), decididos a dar esse recado ao comissário. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) antecipou a mensagem levada a De Gucht em carta entregue ao ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em que previu "impactos negativos para muitos setores industriais brasileiros e para o país", caso seja firmado um acordo como o negociado entre UE e Mercosul, sem "avanços importantes" no cenário de competitividade no Brasil. A mensagem vai na contramão do recado trazido por De Gucht aos interlocutores em suas conversas reservadas no Brasil, onde ele disse haver uma "janela de oportunidade" na Europa para um acordo, mas só até julho do ano que vem.

"Não é apenas uma questão de comércio, há muito mais investimento europeu no Mercosul do que China, Índia e Rússia juntos", comenta o comissário, principal negociador comercial da UE, que reconhece existirem temas delicados nas negociações, como a insistência europeia em regras mais fortes de proteção à propriedade intelectual e maior abertura às firmas europeias nas compras e licitações do setor público.

"Não vejo razões para um duplo mergulho na economia europeia", argumentou o comissário, ao falar para o Valor sobre os temores, existentes no setor privado, de um retorno da recessão. "Houve uma dramática queda do comércio em 2008, mas uma recuperação também dramática a partir do segundo semestre de 2009".

Ele reconhece as preocupações em relação ao euro, mas lembra que a Europa reagiu rapidamente "em apenas um fim de semana" às ameaças de colapso nos países da região, com um pacote de centenas de bilhões de dólares, que evitou agravamento da crise em países como a Grécia. "Há uma recuperação na Europa que é desigual. Mas, em geral, podemos dizer que, na Europa a crise começa a acabar."

De Gucht ouviu de Amorim que o tema da propriedade intelectual, somado à resistência dos empresários em firmar um acordo no horizonte próximo, são fortes obstáculos. A Europa também tem dificuldades para chegar a um acordo, pela resistência de países, como a França, em aceitar maior abertura dos mercados agrícolas europeus e a necessidade de proteção a denominações de origem em produtos agrícolas europeus (nomes como La Rioja para vinhos são disputados entre espanhóis e argentinos, por exemplo).

Ao falar ao Valor, e, após o encontro com Amorim, em um breve encontro com jornalistas, De Gucht não quis entrar em detalhes sobre a negociação. Mas repetiu o que disse a Amorim e ao ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, com quem se encontrou pela manhã: embora existam resistências entre os "países membros", as negociações e a assinatura do acordo são prerrogativa da Comissão Europeia. E os comissários estão dispostos a chegar ao livre comércio com o Mercosul, desde que com regras "abrangentes, equilibradas e ambiciosas".

Apesar do otimismo, De Gucht e Amorim concordaram que os negociadores dos dois blocos vão discutir apenas "questões normativas" em Bruxelas, na terceira semana de outubro. Não há previsão para iniciar a etapa decisiva da negociação, conhecida como troca de ofertas, em que cada lado expõe as propostas concretas de abertura de mercados e de criação de regras comuns. Os funcionários dos governos do Mercosul e UE estão apenas definindo como cada tema será tratado, em termos gerais, para orientar a fase final.

Apesar do otimismo do comissário, qualquer acordo terá ainda de passar pelo conselho de ministro da UE, por consenso entre os países membros, e, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, que reforçou o bloco europeu, é exigida também aprovação do Parlamento Europeu. Aos funcionários do governo brasileiro, que manifestaram dúvida sobre a disposição do conselho em sancionar as decisões da Comissão Europeia, De Gucht argumentou que o próprio presidente do conselho, Herrmann von Rompuy, participou, no ano passado, da decisão de relançamento das negociações de livre comércio, paralisadas desde 2004.

Na prática, os europeus dizem haver uma "janela de oportunidades", porque a partir do segundo semestre de 2011 estará avançada a discussão da nova Política Agrícola Comum (PAC), que fixará as regras de subsídios aos produtores europeus, e serão realizadas as eleições presidenciais na França, onde o tema da abertura do mercado agrícola é explosivo.

Os empresários brasileiros não veem a conjuntura como um momento de oportunidade, como deixaram claro na carta a Amorim. Na carta, a CNI reafirma o interesse no acordo com os europeus, mas não tão cedo. Para evitar prejuízos à indústria, argumentam, será preciso resolver pelo menos quatro problemas: 1) o descompasso do câmbio, que leva à forte valorização do real; 2) dúvidas sobre o euro, apesar da recuperação europeia, que pode ter impacto sobre a "estratégia das empresas brasileiras"; 3) tendências "divergentes" dos dois mercados, com crescimento vigoroso no Brasil e desaceleração na Europa, que deve incrementar importações brasileiras de produtos da Europa; e 4) políticas divergentes de apoio, com pacote "tímido" para exportadores brasileiros e o chamado custo-Brasil.