Título: Ex-BC questiona prioridades do BNDES
Autor: Aline Lima
Fonte: Valor Econômico, 15/09/2010, Finanças, p. C8

De São Paulo

Dizer que o Brasil entrou fortalecido na roda viva da crise financeira e saiu dela melhor do que o imaginado virou chavão. Dois anos após a quebra do Lehman Brothers, o balanço é favorável à atuação do Banco Central - embora nem todos os problemas provocados pela crise tenham sido solucionados. Paulo Vieira da Cunha, ex-diretor de política monetária do BC e coordenador de estudos de mercados emergentes da Tandem Global Partners, observa que os bancos médios ainda enfrentam os desafios dos altos custos de captação. Além disso, ele lança dúvidas sobre a seleção de empresas e projetos que tem sido feita pelo BNDES - importante agente do governo de estímulo da economia no período pós-crise. A indústria naval seria um dos exemplos. "Está-se estimulando a entrada de coreanos no Brasil e eu não sei se, daqui a dez anos, quando terminar os contratos, eles vão embora e todo o subsídio fica perdido." Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista. Valor: O Brasil passou bem pela crise por sorte ou por eficiência?

Paulo Vieira da Cunha: O Brasil passou bem pela crise por duas razões. Primeiro, pelas medidas anticrise, que foram extremamente importantes; em segundo lugar, pelas próprias características da crise. Como a economia brasileira está mais distanciada dos mercados financeiros centrais, o impacto foi menor. Além disso, o país se beneficiou desproporcionalmente do estímulo chinês. Não fossem os chineses, o Brasil não teria atravessado a crise da forma que passou.

Valor: Qual a medida mais acertada tomada pelo BC brasileiro?

Vieira da Cunha: A grande vantagem do BC em relação ao Fed [Federal Reserve, banco central americano] é que ele sabia o que estava acontecendo. O Fed abdicou não só da supervisão do mercado como de colecionar os dados. Com esse conhecimento, o BC pôde atuar corretamente, como no caso dos bancos médios. Incentivou compra de carteiras e outras medidas que tiveram bom desempenho.

Valor: Poderia ter havido alguma ação mais eficaz?

Vieira da Cunha: Do lado da política fiscal faltou um pouco mais de análise. Como a economia brasileira crescia a taxas estupendas até o segundo semestre de 2008, a reação da indústria foi pôr totalmente o pé no freio. As montadoras deram férias coletivas imediatamente, e isso provocou um certo pânico no governo.

Valor: Boa parte das medidas foi revista, com exceção daquelas que beneficiam bancos pequenos. Seriam eles o ponto frágil?

Vieira da Cunha: As dificuldades dos bancos de pequeno e médio portes vêm de antes da crise. O problema, na origem, está no custo de captação médio maior do que o dos outros bancos que têm uma grande rede de depósitos. Muitos dos bancos médios conhecem bem seus clientes, se anteciparam aos demais no crédito consignado, conseguiram produzir boas carteiras e cresceram. Mas, quando veio a crise, voltou ao mesmo problema, que continua.

Valor: Como o sr. avalia a atuação do BNDES durante esse período?

Vieira da Cunha: Esse é um assunto complexo e controverso. No momento da crise, os bancos paralisaram uma série de negócios que poderiam ter provocado uma reação em cadeia extremamente negativa, não fosse uma ajuda emergencial, que veio através do BNDES. Em outros países, os bancos públicos também tiveram atuação importante, como no Chile, Alemanha, França e México. A dificuldade, no caso brasileiro, é que o BNDES atua no momento de crise mas não deixa de atuar depois. O banco já vinha, antes da crise, com um aumento brutal do volume de financiamentos de longo prazo, que tem a ver com a implementação do PAC e de outros projetos. Conta, para isso, com amplo apoio do empresariado brasileiro, especialmente do setor industrial paulista.

Valor: O BNDES deve reduzir sua atuação daqui para frente?

Vieira da Cunha: Continuar a aumentar os volumes na maneira que vinha crescendo seria matematicamente impossível, e ele já está diminuindo. Fiz um cálculo dois meses atrás que mostra que o BNDES financiou 25% do investimento no Brasil, em 2009. Não é uma atuação na margem, que busca situações excepcionais. Dependendo da capacidade que o BNDES tem de fazer seleção adequada dos projetos, isso pode comprometer a produtividade daqui a cinco, dez anos.

Valor: Poderia haver outras consequências?

Vieira da Cunha: Num caso extremo, o país afunda. No caso do segundo PND, houve exacerbação de endividamento e colapso do sistema bancário. Hoje em dia, não acredito que esse efeito do passado que levou a Proer e Proes se repetiria, pois as condições de financiamento da economia brasileira e o tamanho mudaram muito. As consequências não serão desastrosas. A preocupação atual é com o custo de oportunidade. Se pegássemos todo o recurso dirigido via esses três bancos [BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica] e jogássemos num modelo alternativo, será que não haveria um crescimento maior, um aumento maior da produtividade? Infelizmente, só saberemos depois. Os historiadores vão responder a essa questão.

Valor: Poderia haver perdas mais à frente?

Vieira da Cunha: Não estou muito preocupado com perdas, mas com o que se deixou de ganhar. Os investimentos não são necessariamente ruins. Isso tem muito a ver com o retorno gerado por certos tipos de atividade. A indústria de estaleiros, por exemplo, é extremamente complicada. Está-se estimulando com esses novos projetos a entrada de coreanos no Brasil e eu não sei se, daqui a dez anos, quando terminar os contratos, eles vão embora e todo o subsídio fica perdido. Além do quê, não se sabe se esses coreanos estão mesmo transferindo tecnologia de ponta. Agora, não estou por dentro do assunto. São suspeitas de macaco velho.

Valor: Quais as principais mudanças ocorridas no sistema financeiro americano nesses últimos dois anos?

Vieira da Cunha: A destruição de um grande número de bancos levou a uma concentração do sistema. A contradição é que, de certa forma, as instituições que já eram grandes demais ficaram ainda maiores. As interconexões sistêmicas do sistema bancário global aumentaram ao invés de diminuírem, pois essa concentração ocorreu em todo o mundo.

Valor: Isso é preocupante?

Vieira da Cunha: Muito preocupante. Agora, o outro lado dessa moeda é que há uma conscientização maior dos problemas desse tipo de negócio [bancário] e dessa tendência de estrutura oligópolica estável. O oligopólio é sempre um perigo, não só em termos de competitividade mas também de estabilidade do sistema. Finalmente, no domingo, o comitê de Basileia emitiu suas normas. Embora o prazo tenha sido diluído, elas vão na direção certa.

Valor: Que efeitos são esperados?

Vieira da Cunha: As novas regras vão diminuir a capacidade de alavancagem dos bancos. A Basileia 3 tende a afetar a rentabilidade das instituições, que deverão mudar, em parte, suas estratégias. O Fed também se prepara e, de certa forma, já está fazendo uma supervisão sistêmica mais ativa. Contratou gente e ganhou novos poderes. Todo aquele conceito de auto-supervisão, de que os próprios mecanismos de concorrência controlaria os riscos dos bancos, toda essa concepção foi destruída. Não há a menor dúvida de que reguladores agora não confiam nos bancos.