Título: Telebrás, o primeiro passo?
Autor: Dutra, Pedro
Fonte: Valor Econômico, 16/09/2010, Opinião, p. A14

A edição do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) e a recriação da Telebrás por meio de um decreto do presidente da República mostrou a disposição do governo federal em intervir na ordem econômica sem ouvir o Congresso.

O decreto contraria duas regras constitucionais. A primeira, que determina que a intervenção do Estado - e, claro, a do governo - na ordem econômica só pode se dar por força de lei. A segunda, que diz que a criação de empresa estatal só pode se dar por meio de lei especial, e atendidos os pressupostos fixados no texto constitucional. Claro o sentido político da primeira regra, não fosse a Constituição Federal um estatuto político-jurídico: fazer o Executivo, quando este desejar planejar e regular a economia, ouvir Legislativo, para esse fim eleito.

O legislador constitucional, advertido da contumaz hipertrofia do Executivo sobre os demais poderes, em especial sobre o Legislativo, quis prevenir esse vezo histórico, de má extração democrática. Já a segunda regra traduz a reação do legislador aos efeitos da estatização dos serviços públicos (e não só deles), imposta pelo regime militar, cujo insucesso verificou-se também na década de noventa nos países do leste europeu, então iniciando um processo de democratização.

A disposição do atual governo em intervir na economia por meio da edição de decretos, portarias, de comandos verbais expressos em eventos públicos e por ações administrativas de órgãos ordinários seus poderia sugerir a existência de um projeto definido, a ser implantado por essa forma. Mas no caso do Plano Nacional da Banda Larga não dispõe o governo de um plano que tenha consultado as normas legais e a experiência recente, com um rigor que seria razoável esperar em ações tão determinadas.

O anúncio das cidades a serem atendidas pela oferta de capacidade de rede da Telebrás ilustra bem a celeridade desatenta do governo na deflagração do PNBL. O Plano, como tal, não existe. É, antes, um "work in progress", ao qual foi dada uma carga de energia, que ativou esse primeiro movimento da Telebrás. O decreto que o instituiu não desenhou mais do que o seu contorno, e o fez em termos vagos, que suscitam apreensão, entre elas o conceito de oferta adequada, a qual, entendida não existir pelo governo, autorizaria a Telebrás a ofertar serviços de rede no mercado de banda larga.

Mesmo sem haver esclarecido o significado desse termo, e portanto se existe ou não oferta adequada, o anúncio das cidades pelas quais a Telebrás iniciará a sua atuação foi feito. E, das cem cidades assim arroladas, em 97 já existe oferta regular de banda larga feita por empresas privadas, contrariando a justificativa inicial oferecida pelo governo à atuação da Telebrás, que seria voltada às cidades desatendidas pela iniciativa privada.

A formulação, a discussão e a execução do PNBL dão-se no âmbito da assessoria do presidente da República, em frisante contraste com a estrutura e os deveres legais de um órgão colegiado e especializado, como é a Anatel, a quem cabe, por Lei, regular as empresas de telecomunicações. Os efeitos desse deslocamento funcional e hierárquico são inevitáveis e complexos. Alguns deles já alcançam a Anatel e ameaçam fazer a sua função resvalar para um papel secundário.

Cinco décadas depois, pode se estar assistindo ao mesmo processo então iniciado, que resultou na estatização total das prestadoras de serviços de telecomunicações e culminou, na década de 90 no esboroamento desses serviços, ao qual se seguiu a privatização, que, inegavelmente, dotou o Brasil de um sistema moderno e eficiente de telecomunicações.

O propósito, declarado, de a Telebrás atuar ofertando seus serviços a preços bem inferiores aos hoje praticados no mercado, como divulgado, põe, de imediato, uma questão essencial: ou (re)nasce a estatal dotada de uma invulgar eficiência a lhe permitir praticar tais preços, ou estará ela praticando preços abaixo do seu custo, forrada por recursos públicos. A contrariedade dessa conduta à Lei Geral de Telecomunicações e à Lei de Defesa da Concorrência é óbvia, pois ela distorce a dinâmica concorrencial existente, frustrando os efeitos dela esperados, de ampliação sustentada da oferta a preços efetivamente decrescentes.

Já os investimentos futuros serão afetados no momento em que os investimentos realizados mostram o crescimento acelerado da oferta de banda larga. Qual a segurança em planejar novos investimentos privados nesse contexto, que se anuncia? Se a Telebrás ofertará a preços abaixo do custo no mesmo mercado onde já operam empresas privadas acima do custo, não é difícil estimar o deslocamento da preferência do consumidor. Este, acertadamente, não questionará o subsídio do Tesouro Nacional a fluir aos cofres da Telebrás: será mais um acréscimo à carga tributária que já lhe pesa enormemente.

Maior a concorrência, menor o preço do serviço; menor aquela, maior este. Subsidiado o preço do serviço pelo Tesouro Nacional, rompe-se a dinâmica concorrencial existente, a pressão por ampliar a oferta a preços artificialmente baixos cresce, e em proporção direta a esta cresce a acusação às empresas privadas de praticarem preços vistos como abusivos. Amplia-se a seguir a intervenção do governo, primeiro controlando os preços das empresas privadas, e estas cessam de investir; em seguida, aumenta a atuação da empresa estatal, em conjunto com as empresas privadas (ou com uma delas, eleita pelo governo) já sob sua coordenação. Ou estas são estatizadas. E a história se repete, uma vez mais.

O modelo italiano formulado nos anos 20 pôs sob a coordenação direta do governo a atuação das grandes empresas, sob o pretexto de voltá-las ao interesse nacional. Esse modelo foi adotado por Getúlio Vargas na década seguinte, e repetido no regime militar ao início, mas logo depois desdobrou-se em uma ampla estatização, que alcançou especialmente as prestadoras de serviços públicos.

Partindo-se de disposições pessoais bem intencionadas diante de carências reais, pode-se chegar a uma reforma radical em mercados econômicos expressivos. A experiência brasileira ilustra ricamente como esse processo se dá entre nós.