Título: Conciliação é usada em disputa por terra no Pará
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 27/09/2010, Legislação, p. E1
De um lado da mesa está um fazendeiro e seu advogado. Do outro, representantes do Incra, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O clima é quente não apenas pelo forte calor do Pará, mas pela tensão quase palpável do grupo, prestes a iniciar a terceira audiência de conciliação que tenta dar fim a uma disputa iniciada em 2007. O motivo da discórdia é a posse da Fazenda São Luís - localizada nas proximidades do município de Canaã dos Carajás. Foram quase duas horas de conversa, mas o acordo não veio dessa vez e uma quarta conciliação será remarcada. Desde 2001, o Pará lidera a lista dos Estados que mais possuem conflitos fundiários, respondendo por 84,5% das disputas no país. Somente no ano passado, foram 26 ocupações em fazendas da região e uma média de 15 assassinatos por ano, apenas na região de Marabá. Os dados alarmantes fizeram com que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Judiciário local criassem frentes para apaziguar esses conflitos. Atualmente, nenhuma disputa agrária é julgada pela Justiça sem que ocorram audiências prévias de conciliação. A medida, que à primeira vista aparenta ser mais uma etapa processual, tem gerado resultados. Neste ano, três acordos foram fechados na Vara Agrária de Marabá, algo impensável há alguns anos. Outras 27 ações sobre o tema estão em conciliação, das quais 14 em fase final, com acordos em vias de serem homologados.
"Seria muito mais fácil dar uma sentença, sem conhecer de perto as pessoas envolvidas. Mas uma decisão judicial não consegue necessariamente solucionar o problema", afirma a juíza Cláudia Regina Moreira Favacho Moura, titular da Vara Agrária de Marabá. A magistrada pretende encaminhar outros 162 processos sobre o tema que tramitam em sua vara para negociação.
A história do confronto na Fazenda de São Luís é semelhante a outras ações de reintegração de posse que tramitam na Justiça paraense. Grandes fazendas de pecuária são ocupadas por membros de movimentos sociais, que costumam escolher áreas com registros suspeitos de irregularidade - situações muitas vezes criadas por problemas nos cartórios extrajudiciais.
No Pará, atuam nessas regiões de conflito integrantes do MST, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri) e da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf), que reivindicam a reforma agrária. Atualmente, os juízes de primeira instância são orientados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJ-PA) a não conceder liminares de reintegração de posse sem antes tentar resolver o conflito por meio de uma conciliação. Segundo a juíza Cláudia Moura, uma liminar só é concedida se for constatado que a fazenda cumpre a sua função social, o que significa estar em dia com as legislações ambiental e trabalhista e ser uma área produtiva. Também não pode haver trabalho escravo e nem desmatamento ilegal
No caso da Fazenda São Luís, o que a Justiça busca definir é qual parte da terra - cuja área de 18 mil hectares possui 32 registros de posse diferentes - será devolvida ao Estado e ao proprietário, que não é o dono original do título, e ainda se haverá alguma destinação aos assentamentos. O espaço tem potencial para exploração mineral e já faz parte de um projeto da Vale, o que torna a negociação ainda mais complexa.
O advogado Ercides Lima de Oliveira Junior, que representa o proprietário da fazenda e 18 donos de terras no Sul do Pará em outros conflitos, afirma que a conciliação tem sido a melhor estratégia para os problemas da região, pois não existe efetividade do Estado no cumprimento das decisões judiciais. "Conseguimos uma liminar de reintegração de posse há mais de um ano e nada foi feito. A conciliação tem sido a única maneira de fazer com que aconteça alguma coisa", diz. Segundo o MST, as cerca de 700 pessoas que ocupam a Fazenda São Luís vivem da agricultura. "Estamos batalhando desde 2007 e sabemos que um acordo será melhor para todas as partes", afirma Tito, um conhecido líder dos sem terra da região.
As cinco varas agrárias do Pará - nos municípios de Marabá, Altamira, Redenção e Santarém - têm 1,4 mil ações. "O número parece pequeno. Mas cada ação envolve milhares de pessoas", diz a juíza-auxiliar do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), Kátia Parente. De acordo com o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) José Batista Afonso, que representa o MST e a Fetagri em 70 processos que tramitam em Marabá, as conciliações feitas nas varas agrárias podem resultar em acordos principalmente pela possibilidade de se ouvir os diversos envolvidos, como o Incra.
A maior parte dos integrantes dos movimentos de ocupação no Sudeste do Pará vêm do Estado do Maranhão, atraídos por promessas de emprego que não se concretizam, o que os leva a se engajarem em movimentos sociais. Benedito Lopes Santos, de 70 anos, por exemplo, nasceu em São Domingo do Araguaia, interior do Maranhão, e está desde 2007 no movimento da Fetagri, que ocupou a Fazenda São João, em São João do Araguaia. Durante as audiências de conciliação no início deste ano, o movimento aceitou sair da fazenda com a condição de que o Incra faça uma avaliação da possibilidade de desapropriar a terra para a reforma agrária. Foi o primeiro passo para um possível acordo. "Estamos aguentando por milagre", diz Benedito. Ele vive hoje com cerca de 30 famílias à beira da estrada, ao lado da Fazenda São João, onde plantava mandioca, milho e feijão. "Recebíamos cesta básica do Incra, mas tem época que falha, já tem cinco meses que não recebemos", diz. Aos 70 anos, Benedito começou a aprender a ler no assentamento com uma ocupante conhecida pelo apelido de "amorzinho", por assim se referir a todos a quem leciona.
O movimento está na expectativa do resultado das audiências de conciliação promovidas na Vara de Marabá, mas um acordo com o proprietário, por enquanto, está difícil. O laudo do Incra declarou a terra improdutiva. O proprietário da Fazenda São João há 20 anos, Samuel Fernandes Martins, no entanto, discorda. Segundo ele, por determinação da própria legislação ambiental, decidiu preservar cerca de 70% da área como reserva ecológica, e utilizar como pastagem apenas 800 hectares. "O Incra considerou a mata como área de produção, e não de reserva", afirma Martins. Segundo ele, se a terra for desapropriada para a ocupação, o resultado será o desmatamento. "Não tenho interesse em vender a terra. É a minha única propriedade e vou brigar por ela até o fim."