Título: Em travessia por zonas de turbulência
Autor: Costa , Raymundo
Fonte: Valor Econômico, 30/09/2010, Política, p. A10

O Learjet 60 de José Serra mal ganhara altitude quando enfrentou turbulência, e um forte solavanco fez o candidato do PSDB a presidente esbravejar em voz alta. "É isso que eu não suporto em avião". Depois, novamente bem humorado, passou a procurar culpados, entre os outros sete passageiro. "Eu não sou. Eu nunca peguei um balanço desses". É provável. O mesmo não pode ser dito de sua campanha eleitoral, que enfrenta turbulências desde antes de Serra receber o mandado do PSDB para disputar a Presidência da República, no domingo. Uma disputa à qual o tucano chega com chances mínimas de ir para o segundo turno com Dilma Rousseff (PT). E se chegar, entra na eleição com problemas que se acirraram na reta final da campanha.

Reza a lenda que Serra tem pavor de avião. Não parece. Na campanha ele literalmente morou dentro de jatinhos. Alega que é o único jeito de caçar votos num país continental. Para ser mais preciso, Serra passou madrugadas dentro de aviões e de helicópteros. E este hábito noturno é um dos problemas apontados no partido para a fragilidade da campanha do PSDB.

Notívago, Serra "começa a funcionar" efetivamente já com a noite avançada. Na cúpula do PSDB, desde o início da campanha existe a queixa de que não é possível ganhar uma eleição fazendo campanha de madrugada. Quando a campanha de Serra começava, Dilma em geral já havia produzido farto material noticioso para a internet.

A título de ilustração: na sexta-feira 27, Serra foi a São Carlos e Araraquara, no interior de São Paulo. Voltou cerca das 23h. No dia seguinte, iria a Paraíba. Deixou de levar convidados porque queria aproveitar a viagem para dormir.

A viagem a São Carlos e Araraquara são bem o retrato da reta final da campanha de Serra, fortemente concentrada em São Paulo: os tucanos esperavam ganhar de Dilma por uma diferença entre 4 e 6 milhões de votos, mas chegam à eleição tendo de correr o Estado para recuperar a surpreendente vantagem estabelecida pela candidata do PT.

Nada disso passava pela cabeça de Serra quando ele resolveu ser candidato. Embora não dissesse, o tucano tinha certeza de que venceria Dilma Rousseff, que julgava fraca e inexperiente. Acreditava que "engoliria" Dilma nos debates. Não foi o que se viu. E ainda acredita que engolirá, no segundo turno. "Ela não vai ganhar a eleição", repete Serra, como se fosse um mantra.

Serra julgava e julga Dilma uma candidata fraca. Uma candidata fabricada. Agora passou a incluir em seu repertório que a vantagem da candidata do PT é o "segundo" mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - o tucano provavelmente queria se referir ao terceiro. "Ela vai perder a eleição", repetiu, quando o Learjet 60 do ex-deputado Ronaldo César Coelho já voava em altitude de cruzeiros, sem turbulências na rota até São Paulo.

Serra é candidato desde que conseguiu se impor ao PSDB, em 2002. Quatro anos depois de perder a eleição para Lula, ele era novamente candidato e de fato sofreu a oposição de Geraldo Alckmin, então governador de São Paulo. Ficou nos anais de 2006 que Alckmin "botou o pé na porta" e se impôs a Serra. Na verdade, Serra calculou que Lula, com a máquina do governo na mão, se reelegeria, independentemente do escândalo do mensalão, no ano anterior - o caso dos aloprados se deu às vésperas da eleição.

Sem Lula no páreo, 2010 era a eleição certa para o tucano. Ele estava escolhido pelo PSDB desde meados de 2009. O governador de Minas Gerais, Aécio Neves, fora comunicado pelo presidente do partido, Sérgio Guerra, da decisão da cúpula. Mas os tucanos deixaram que Aécio se movimentasse para ter um discurso interno em Minas. Serra concordou a contragosto.

Dizia que Aécio falava "um troço" e a imprensa noticiava. Voltava ao mesmo assunto 15 dias depois e os jornais noticiavam a mesma coisa. Por falta de memória, preguiça de ficar comparando e porque conviria "ter sempre notícia fresca", argumentou, aborrecido, com um interlocutor. "Toda a questão em Minas de querer que ele seja candidato é porque ele fez campanha para tal. Se ele chegasse num momento e dissesse "olha, eu acho melhor... (ser o Serra)," não aconteceria nada".

Serra referia-se às reiteradas vezes que Aécio Neves deu declarações sobre sobre sua proposta de realização de prévia para a escolha do candidato. Quem participou das negociações, à época, assegura que Aécio nunca foi firme na decisão de concorrer à Presidência. Ora parecia animado, ora não.

Serra chega ao final da campanha com as mesmas convicções sobre o trabalho da imprensa com que entrou: ele acredita que os jornais, se têm uma boa notícia sobre ele, tem que ouvir também o PT, para serem equânimes. "Então não tem mais crítica. Se não puder me criticar, não critica o outro lado".

É possível que Serra tenha avaliado mal o impacto da popularidade do presidente Lula não eleição. Dizia sempre que ele antecipara a eleição para não trabalhar. "Governar dá trabalho". Depois, por volta de setembro do ano passado, passou a refletir em voz alta: "Ele é muito popular". O entorno de Serra passou a falar em reeleição ao Palácio dos Bandeirantes. Mas o assunto esfriou. Até o Carnaval deste ano.

Segundo apurou o Valor, à época, com São Paulo inundada pelas chuvas fortes, Serra chegou a comunicar sua desistência da disputa. E o que é mais surpreendente: Aécio Neves, que escrevera em dezembro uma carta ao partido deixando a disputa pela indicação do PSDB, concordou em ser o novo candidato. A decisão não durou 24 horas. As pesquisas, àquela altura favoráveis ao tucano paulista, desaconselhavam a mudança, segundo conta hoje um integrante da cúpula partidária.

Os problemas que Serra enfrenta na reta de chegada foram gestados na sua indicação. O presidente do PSDB, Sérgio Guerra, por exemplo, era contrário à contratação do jornalista Luiz Gonzalez (ou "o Gonçalo", como prefere dizer), mas foi convencido por Serra que marqueteiro de campanha tinha que ser alguém da confiança do candidato -Guerra teve problemas com Gonzalez já na campanha de Geraldo Alckmin, em 2006; Luiz Gonzalez ganhara duas eleições (a prefeitura da capital e o governo de São Paulo) para Serra.

Na queda de braço que se seguiu, Gonzalez venceu, apesar de o primeiro programa de televisão de Serra, no horário eleitoral gratuito, ter recebido a desaprovação geral dos tucanos - de Guerra ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que se aborreceu com o fato de Lula ter sido apresentado como um estadista. FHC, na realidade, foi praticamente afastado da campanha - sua participação mais importante talvez tenha sido um debate na Rede Mobiliza, mantida pela campanha tucana na internet.

A explicação de Serra para o afastamento de Fernando Henrique é a mesma que deu no debate da TV Record - quem precisa de padrinho é Dilma Rousseff, que escorou sua candidatura na popularidade do presidente da República. Na prática, as pesquisas qualitativas é que retiraram FHC das campanhas do PSDB - Serra já o havia escondido em 2002. O mesmo ocorreu com Geraldo Alckmin em 2006. O "apagão elétrico" de 2001 foi uma maldade que nem a bondade do Plano Real, que acabou com a superinflação de anos, foi capaz de apagar, pelo que se deduz do que é ouvido em alguns grupos de pesquisas.

A orientação de González, e que deve ser mantida no segundo turno, caso Dilma não vença no primeiro, era mudar a percepção das pessoas segundo a qual Serra é membro de um partido das elites, ligado aos ricos. Seu objetivo, construir a história de uma pessoa preocupada com os assuntos de interesse da população, como metrô, salário mínimo, aposentadoria. "Uma pessoa preocupada com a vida"

Nos programas de TV, entraram críticas à candidata, ao PT, ao presidente e ao ex-deputado José Dirceu, sempre pela voz de um locutor. "É do jogo político", disse González ao Valor. O que o jornalista condenou violentamente foi a gravação de três vídeos com ataques a Dilma e ao PT.

Um desses vídeos, com duração de três minutos, apresenta imagens de uma "metamorfose" do rosto da candidata Dilma Rousseff no de José Dirceu, seu antecessor na Casa Civil e apontado como "chefe de quadrilha" no processo "dos 40" do mensalão. "Eu sou contra, fizeram pelas minhas costas. É uma estupidez. É um lixo", disse González ao ser apresentado ao vídeo.

Na realidade, o jornalista e marqueteiro de José Serra foi o primeiro a assistir ao vídeo. E foi contra sua difusão no Youtube. O candidato também sabia dos vídeos, assim como o presidente do partido, Sérgio Guerra. O Valor apurou que a inspiração dos vídeos foi de Eduardo Jorge Caldas Pereira, vice-presidente do PSDB e talvez o tucano mais ressentido com o PT.

Ainda no governo FHC, quando ocupou a Secretaria Geral da Presidência, Eduardo Jorge Caldas Pereira virou um alvo fixo do PT e de procuradores do ministério, acusado de participar de um esquema de corrupção para a construção da sede do TRT paulista. Eduardo passou anos brigando no Judiciário e foi inocentado de todas as acusações, no final. Agora, EJ, como é chamado, estava ao largo da campanha de Serra, até que se descobriu que seu sigilo fiscal foi quebrado.

Virou assunto central na campanha. E como tal passou a engrossar a lista dos políticos que defendiam o endurecimento do discurso de Serra, com ataques à candidata adversária mais contundentes. "O mundo político quer fazer campanha para as pessoas que a gente conhece. Essa parcela é minoritária", reagia González quando a pressão aumentava - e cresceu muito depois que Serra foi perdendo votos em territórios antes considerados inexpugnáveis, como o Rio Grande do Sul, o Paraná e - especialmente - São Paulo.

Simulado ou não, o otimismo de Serra aumentou nas duas últimas semanas porque ele acha que a intervenção de Lula em alguns Estados estava sendo contraproducente. Ele cita o caso de Minas Gerais. Nos comícios do candidato do PSDB, Antônio Anastasia, e de Aécio Neves ao Senado, passaram a surgir faixas como os dizeres segundo os quais quem decide o destino de Minas são os mineiros.

Serra acredita que o mesmo está ocorrendo em Santa Catarina, onde Lula fez campanha contra o candidato da aliança DEM-PSDB, Raimundo Colombo, e no Rio Grande do Sul. Lula também fez uma gravação contra Tasso Jereissati, do qual se tornou praticamente inimigo, que é acionada quando o eleitor atende o telefone. "Você imagina um eleitor lá de Sobral atender o telefone e ouvir a voz do Lula do outro lado da linha", diz Sérgio Guerra.

Serra não queria um programa de governo. A exemplo de Marina Silva (PV) - que reclamou de o governo ter feito um projeto a partir de uma ideia que ela lançara -, acredita que as propostas divulgadas pelas campanhas são imediatamente pirateadas pelos adversários. Ainda assim, encarregou o ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo Xico Graziano a preparar um documento que levou o título "Diretrizes Gerais do Programa".

O documento ficou pronto a tempo de ser apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no registro da candidatura, mas Serra mudou de opinião e entregou ao tribunal cópias de dois discursos - um feito no pré-lançamento da candidatura e outro na convenção do PSDB que oficializou sua candidatura. Os discursos relacionavam alguns projetos que o tucano promete fazer no governo, se for eleito.

Agora, na reta de chegada da campanha, as críticas sobre a falta de programa dos candidatos atingiu Serra. Ele chamou novamente Xico Graziano e pediu que ele fizesse a sistematização das propostas discutidas na internet, na Rede Mobiliza. Até o último dia 2, 19.904 pessoas entram na rede para apresentar e discutir projetos.

Há três semanas Xico começou a fazer a sistematização das propostas. Serra fez duas exigência. A primeira delas que as propostas fossem numeradas. "Proposta nº1, Proposta nº2" e assim por diante. Além disso, Xico também deveria relacionar projeto por projeto para cada um dos 26 Estados brasileiros e o Distrito Federal. O documento está pronto. Tem 261 páginas.

Havia a possibilidade, até ontem, que o documento fosse divulgado antes da eleição, o que parece improvável à esta altura da campanha, quando o candidato está concentrado no debate desta noite, na TV Globo. O programa está guardado a sete chaves, mas pode-se afirmar que tem um capítulo intitulado "cotas raciais x cotas sociais" e propõe a criação de um novo ministério.

Trata-se do Ministério da Logística, com a estrutura do atual Ministério dos Transportes. No início da campanha Serra já prometera criar o Ministério da Segurança. No documento não se faz referência à extinção de ministérios e secretarias, cujo número alto é uma das principais acusações da oposição ao governo de Lula e do PT.

A segunda exigência feita por Serra a Graziano: "Quero todas elas (as propostas) com números". Ou seja, o quanto será gasto em cada projeto ou programa. Ao Valor, o candidato afirmou que a promessa de aumentar o salário mínimo para R$ 600, dar o reajuste de 10% aos aposentados, projeto votado por Lula, e conceder o 13º para o Bolsa Família é pra valer. Detalhe: o 13º não exclui o aumento do benefício mensal do Bolsa Família. Serra diz que há dinheiro para cumprir a promessa, só não diz onde.

Na pequena trupe que madruga o Brasil com Serra o otimismo aumentou nas duas últimas semanas. O Learjet de Ronaldo César Coelho anda sempre com oito pessoas: são quatro poltronas e um sofá para quatro pessoas. As poltronas são postadas de frente. Ao lado de Serra viaja a jornalista Paula Santa Maria. Em frente dela, um convidado ou um integrante da comitiva, como a encarregada de fazer a agenda de Serra - muitas vezes decidida alí mesmo, nas viagens de volta. Nos últimos dias, Serra tem incluído visitas a igrejas na agenda. Em São Carlos, recebeu uma carta do bispo Dom Paulo Sérgio Machado. "Se quatro mil votos eu tivesse, quatro mil votos eu lhe daria". Em Salvador (BA), na terça-feira passada, também visitou o bispo. A poltrona em frente ao candidato fica vazia, para Serra esticar as pernas. Quando dorme, o candidato põe uma máscara. O jantar em geral é um sanduíche de peito de peru.

No aeroporto, após o debate da Record, Serra encontrou Sérgio Guerra e Eduardo Jorge. Sem teto para pousar no Rio, o piloto do jatinho que transportava Guerra achou mais prudente pousar em Belo Horizonte a ficar perdendo combustível enquanto esperava a reabertura do aeroporto. Quando chegou ao Rio, o debate já havia acabado e ele ficou esperando José Serra.

"Vá se preparando para o segundo turno , disse Serra a Guerra. "Nós vamos para o segundo turno e temos que começar a trabalhar já na segunda-feira".