Título: A força de uma surpresa inconveniente
Autor: Agostine , Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 30/09/2010, Política, p. A12

Sentada debaixo de uma árvore junto a um grupo de senhoras, em um banquinho de madeira improvisado, Marina Silva ajeita o microfone, olha para dezenas de curiosos e militantes que estão ao seu redor e tenta sensibilizá-los. "Vocês não podem abrir mão do voto do coração. Se votar no candidato do coração, ele vai para o segundo turno", declara. A profissão de fé na "onda verde" da candidata do PV à Presidência marca a escala em Cuiabá e se repete em todas as próximas paradas de Marina. O crescimento da candidatura, segundo pesquisas de intenção de voto, é a grande novidade da semana que antecede a eleição e pode levar a disputa para o segundo turno. "A eleição tem que ter dois turnos, para pensar duas vezes. No primeiro turno a gente vota em quem a gente gosta. No segundo, desvia do pior", diz. Na reta final da campanha, Marina intensifica a defesa de valores e princípios para tentar conquistar os indecisos e descontentes com os candidatos do PT e PSDB. Marina avançou em grandes colégios eleitorais e está empatada com a petista Dilma Rousseff em Belo Horizonte, com 32%, à frente do tucano José Serra, com 15%, segundo o Ibope. Em Brasília, também lidera e em Salvador e no Rio, está tecnicamente empatada com Serra. A candidata, que se apresenta como a terceira via, tenta levar adiante a disputa contra Dilma. "O Brasil vai escolher entre uma Silva e uma Rousseff."

Em seus discursos que antecedem a eleição, Marina prioriza o debate sobre a ética e a coerência na política, temas que ocupam o espaço do que antes era a defesa do ambiente. A capital do Mato Grosso cheira a queimado. Uma névoa encobre a cidade e não é possível ver os edifícios mais altos a poucas quadras de distância. Nem por isso o discurso da candidata fica só no problema ambiental. No Estado campeão em focos de incêndio do Brasil, a ex-ministra do Meio Ambiente diz que aquela fumaça é fruto de um modelo de desenvolvimento equivocado e que é possível "produzir mais, destruindo menos". A discussão que Marina faz é outra. "Tenho evitado o vale tudo eleitoral. Não faço ataques pessoais. Sou coerente com meus princípios e quero fazer o debate, não o embate. É por isso que está havendo uma onda verde", diz, ao visitar uma "casa de Marina", comitê voluntário de campanha.

À sombra da árvore, Catarina Gomes, uma dona de casa de 58 anos, espreme-se entre outras senhoras para ver Marina. Ela sussurra que dará o voto à candidata. "Lula [o presidente Luiz Inácio Lula da Silva] fez bastante coisa boa e se fosse ele de novo, votaria nele. Mas Dilma não é o Lula, não vai ser igual. Todo mundo sabe disso. Sou filiada ao PT, mas vou mudar meu voto."

Do quintal da "casa de Marina", ao lado de uma igreja evangélica, a candidata segue para um microcomício improvisado debaixo de uma árvore. Uma multidão de jovens, senhoras e crianças aproxima-se. "Ela representa o novo. Os outros candidatos têm propostas muito capitalistas", comenta a estudante Maria Cecília de Souza, de 17 anos. Marina tenta convencer que as pesquisas de opinião não refletem a realidade e repete que na primeira vez em que disputou o Senado, as pesquisas indicavam sua derrota, em quarto lugar, mas no fim ela foi eleita.

O crescimento da candidata na reta final e a possibilidade de Marina forçar o segundo turno deixaram o comitê de campanha e o partido em clima de festa. Há poucas semanas, dirigentes do PV não apostavam na possibilidade de a candidata passar dos 15% das intenções de voto. Segundo o Datafolha divulgado nesta semana, ela tem 14% e é a única que cresce nas pesquisas.

Marina não foi a primeira opção do PV para disputar a Presidência. Antes de falar com a senadora, dirigentes do PV sondaram o jornalista Washington Novaes, especialista em temas relacionados ao meio ambiente e aos indígenas, o psiquiatra e escritor Augusto Cury e o senador Cristovam Buarque (PDT-DF). O comando do PV achava mais fácil Cristovam mudar de partido, mas a senadora era a única com possibilidade de fazer com que a sigla não disputasse só para marcar posição. O PV estava cético quanto à possibilidade de Marina aceitar o convite, mas Sérgio Xavier, candidato do PV ao governo de Pernambuco, insistiu na indicação.

No início de 2009, o deputado Sarney Filho (PV-MA) teve a primeira conversa com Marina sobre a possibilidade de a fundadora do PT migrar para o PV. A senadora "não disse que não" e a resposta surpreendeu o comando do PV. Em meados do ano passado, Marina conversou novamente sobre o tema em Brasília, com Sérgio Xavier, o vereador Alfredo Sirkis (RJ) e o dirigente Marco Antonio Mroz. "Ela estava muito interessada. Ouviu muito, falou pouco, mas senti que tinha mordido a isca", lembra Sirkis. O dirigente foi várias vezes a Brasília para falar com Marina e meses depois a senadora aceitou a proposta.

Marina não queria mais disputar o Senado depois de dois mandatos consecutivos. "Ficar mais tempo seria me acomodar no cargo e isso eu não queria", explica. A ideia de voos mais altos ganhou força quando ela pediu demissão do Ministério do Meio Ambiente, em 2008, depois de embates dentro do governo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva nunca mais falou com Marina, depois que ela deixou o PT. Segundo Marina, não foi uma decisão sua. "Estou aberta", diz. A senadora saiu do PT em agosto de 2009, filiou-se ao PV no mesmo mês e lançou-se à Presidência em junho deste ano. A candidata ainda não está à vontade no partido e o discurso de sua campanha de não fazer alianças pragmáticas, mas sim programáticas, não reverberou nos Estados. Nas alianças regionais, encontrou os diretórios do PV aliados a adversários. A seção do partido de Mato Grosso apoia Blairo Maggi, e a de Rondônia está junto com Ivo Cassol, ex-governadores com quem enfrentou-se quando comandava o Ministério do Meio Ambiente.

O PV agrega diferentes interesses políticos, desde os utópicos aos mais pragmáticos. O histórico partidário de muitos dos filiados é bem diferente do de Marina, como o de Sarney Filho: ele começou a vida política na Arena, foi para o DEM e em 2003, ao PV.

A discussão do programa de governo colocou a candidata e integrantes do partido em campos opostos sobre pelo menos três temas. O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, um dos pontos de tensão, foi encarado como uma "questão de semântica". Ela considera religioso o termo "casamento" e prefere "união civil". As divergências mais fortes são em torno da disciminalização do aborto e a legalização das drogas, aos quais Marina é contra. "O que nos uniu foi o consenso em torno da realização de um referendo sobre esses temas", explica Sirkis.

Na candidatura de Marina a participação do partido nas decisões não é majoritária, o que gera divergências dentro do comando do PV. O conselho político traz dirigentes com quem a senadora tem amizade há anos, como Sirkis e o deputado Fernando Gabeira (RJ). De forma esporádica, participa o presidente do PV, José Luiz Penna. No dia a dia da campanha, no entanto, estão companheiros antigos de militância política e ambiental, muitos deles não filiados ao PV.

Parte desse grupo acompanha Marina desde o Acre. É o caso do jornalista Toinho Alves, que conhece desde os tempos de faculdade e com quem divide 30 anos de militância. São os conselheiros de todas as horas. Toinho é um dos responsáveis pela comunicação da campanha e é ele quem escreve o roteiro do no programa eleitoral da TV. Depois que saiu do PT, diz não ter interesse em filiar-se a outro partido. Também não filiado, Tasso Azevedo, responsável pelo conteúdo de conteúdo da campanha, integrou a equipe dela no ministério. Ao mudar-se para o PV, Marina levou outros insatisfeitos com o PT, como o ex-deputado Luciano Zica, que também compôs sua equipe no governo. Na campanha, cuida da agenda política. Outro auxiliar no ministério que foi para o PV é o ex-presidente do Ibama Bazileu Margarido. Na coordenação da campanha está João Paulo Capobianco, filiado ao PV, que trabalhou com Marina no ministério como secretário executivo.

Integrante da Executiva do partido, Alfredo Sirkis diz que não existe "o grupo de Marina" e o "grupo do PV". Mas expõe críticas à condução da campanha. Parte do PV queria que Marina não falasse só sobre o ambientalismo, para não correr o risco de ser monotemática, mas o programa de abertura foi nessa linha. Para Sirkis, a campanha demorou a descobrir seu rumo. "O foco tinha que ser o eleitor pouco consolidado da Dilma [Rousseff] e do [José Serra], resume Sirkis. A correção da rota, diz, se deu no fim da campanha. A candidata participa ativamente das decisões e seu estilo conciliador é elogiado e criticado ao mesmo tempo. "Ela quer ouvir todo mundo e tem uma relação boa com todos. O problema é que isso atrasa as decisões", observa.

O PV sempre atribuiu a desvantagem da candidata ao escasso tempo de televisão, 1min26s. Dilma e Serra, juntos, têm 18 minutos. A candidatura de Marina tem simpatia entre aqueles com um nível maior de escolaridade e de renda e a campanha avalia que não tinha como ser diferente. A candidata diz que quando há um equilíbrio entre as candidaturas, os eleitores se "identificam imediatamente" com suas propostas. "As pessoas estão dizendo que elas querem verbo e pão", afirma. O coordenador da campanha reforça: "Conseguimos nos comunicar com quem lê jornais e o grupo que nos apoiou, na faixa de 9%, 10% do eleitorado, se manteve fiel do começo ao fim", diz Capobianco "Furamos o bloqueio da polarização entre PT e PSDB com a cobertura da imprensa, que mostrou três candidatos principais. Mas a adesão dos menos escolarizados só se dá quando eles conhecem Marina. Ela é coerente, é do povo como Lula e optou por estudar."

A agenda de campanha foi voltada para eventos pequenos, nos quais a candidata falava com poucos eleitores, mas tinha garantida imagens para exibição nos telejornais. "Não tinha como levar Marina antes para os grandes eventos de rua. Ninguém a conhecia", diz Capobianco. O partido acredita que a "onda verde" pode aumentar com exposição de Marina no debate às vésperas da eleição e mira no voto das mulheres, dos que ganham até cinco salários mínimos e dos jovens. Acreditam que a exposição da história de Marina, alfabetizada aos 16 anos, negra, de origem humilde, atraia esse público.

A campanha nas ruas - uma alternativa para o tempo de televisão - tropeça na reduzida militância do PV e na organização do partido. No fim de semana anterior ao da eleição, os eventos no Rio simbolizaram as dificuldades. No sábado, o encontro com lideranças políticas marcado para o Iate Clube foi esvaziado. Em uma mesa de mais de 40 lugares, sentaram-se apenas Marina, Sirkis e meia dúzia de candidatos a deputado, que chegaram ao longo do evento. Fernando Gabeira, candidato do PV ao governo do Rio, chegou no final e comentou: "Não tenho mais nada a dizer depois de tudo o que já foi dito aqui". O engajamento da militância resumiu-se à formação do número 43, do partido, em um gramado da Quinta da Boa Vista. No dia seguinte, em caminhada pelo calçadão de Copacabana, era possível contar nos dedos as bandeiras e faixas indicando que a candidata do PV estava lá.Gabeira não foi. Horas depois, comentou: "Não fui porque eu não ganharia nenhum voto a mais lá."

Nas ruas, com ou sem militância e correligionários, Marina atrai dezenas de pessoas. Simpática, bem humorada e com muita paciência, atende a quase todos os pedidos de foto, abraço e beijo. Muitas das fotos são feitas pela filha do cineasta Fernando Meirelles, que trabalha na campanha, ou por Shalon, uma dos quatro filhos de Marina, que na última semana de campanha pediu licença no trabalho para acompanhar a mãe. Com uma câmera fotográfica, ela faz o "making off" para a família. Shalon fica discretamente perto de Marina e, vez ou outra, solta um: "Mãe, olha aqui!" Shalon parece ter ainda mais tranquilidade que sua mãe: ouve pacientemente, grava depoimentos, pega lembrancinhas e anota e-mail para enviar as fotos.

Os filhos de Marina se revezaram ao longo da campanha para ficar com ela nas viagens ou no apartamento alugado pelo partido em São Paulo. Lá, o espaço é dividido entre Marina e alguns assessores. O marido de Marina fica no Acre e fala com a candidata diariamente. Shalon diz quase nunca ver sua mãe irritada, mas uma das coisas que a tiram do sério é a injustiça.

Quando Marina está com o povo, não é difícil ouvir comentários do tipo "como ela é magrinha!". Durante a campanha, Marina estima ter emagrecido dois quilos dos habituais 53 quilos. "Mas ela come bem sim, tenho até foto pra provar", brinca Shalon. A candidata segue uma dieta elaborada por sua nutricionista, com horários para comer. Há uma lista de alimentos que Marina não pode ingerir, por conta de problemas de saúde, e duas pessoas da campanha providenciam sua alimentação. Por três vezes, Marina recebeu de médicos sua "sentença de morte", de que não conseguiria vencer complicações da contaminação com metais pesados, cinco malárias e três hepatites. Refeita dos sustos, mas com fígado frágil, leva à risca a dieta.

Marina é delicada, tem voz fina e sempre se protege do frio e do sol forte, mas tem disposição para a campanha. Os tradicionais xales que Marina usa ajudam a candidata, friorenta, a ficar em ambientes com ar condicionado. O cabelo preso em um coque, sem nenhum fiozinho rebelde escapando, quase nunca aparece solto. Marina raramente aparece com o cabelo preso em um rabo de cavalo. Segundo um assessor, ela evita o penteado para não ser confundida com Heloisa Helena, vereadora do PSOL. O visual de campanha, elogiado pelo marido, é diferente da juventude, quando teve o cabelo "black power".

Ao analisar os quase três meses de campanha, Marina diz que a grande lição foi ver que "o Brasil reúne as melhores condições para fazer a grande diferença", mas que nenhuma transformação pode ser feita na "velha forma política". Para a candidata, seus adversários tiveram que deixar as acusações de lado para " discutir o Brasil". Marina comemora que sua proposta de aumento de 5% para 7% do PIB para Educação foi incorporada por Dilma. Capobianco, coordenador da campanha, cita mais exemplos e diz que o PT foi o que mais mudou por conta de Marina: defendeu uma constituinte exclusiva para a reforma política, incorporou no discurso a defesa de fontes renováveis para a energia e influenciou até mesmo na ida de Dilma à conferência sobre o clima, em Copenhague.