Título: Dilma foi construída em três anos no vácuo das crises governistas
Autor: Costa , Raymundo
Fonte: Valor Econômico, 01/10/2010, Política, p. A12
Mal terminara o comício de encerramento da campanha de Tarso Genro (PT) ao governo do Rio Grande do Sul, no segundo turno das eleições de 2002, o ainda candidato Luiz Inácio Lula Silva preparava-se para voltar a São Paulo quando localizou Dilma Rousseff entre os presentes. Ele se dirigiu à secretaria estadual de energia do governo Olívio Dutra e falou de chofre:
- Você vai comigo para Brasília.
Dilma pareceu sinceramente surpreendida:
- Eu, presidente? Por quê?
- Porque não quero apagão no meu governo - disse Lula. Uma resposta que na hora passou despercebida das pessoas que rodeavam os dois, mas que atualmente é lembrada no PT como sendo uma das primeiras manifestações de que Lula prestava atenção em Dilma Rousseff e no seu trabalho.
O próprio Lula conta que pensou pela primeira vez em Dilma, para sua sucessão, durante um evento do governo realizado na favela da Rocinha, em março de 2008. Foi quando ele cunhou a expressão "Mãe do PAC", o Programa de Aceleração do Crescimento, um dos carros-chefe da campanha presidencial do PT.
O evento no Rio marcou o presidente da República. Lula ficara impressionado com a recepção popular que teve na Rocinha. No carro com Dilma e outros integrantes do governo, o ministro Franklin Martins (Comunicação de Governo) comentou com a então chefe da Casa Civil: "Eu nunca vi isso antes. É uma coisa apoteótica". Mais tarde Franklin repetiu o comentário a Lula. "Eu também fiquei emocionado", disse o presidente. Ele pudera medir e sentir a extensão de sua popularidade também no Rio de Janeiro.
Na realidade, nem era a primeira vez que Lula pensava em Dilma como candidata, e nem Dilma, ao contrário do que acontecera no Rio Grande do Sul, após o comício de Tarso Genro, ignorava que fazia parte dos planos sucessórios do presidente. Eles nunca chegaram a ter uma conversa oficial de sacralização da candidatura, mas Lula emitia sinais em todas as direções.
Um caso é exemplar. Bem antes das eleições municipais de 2008, ele recebeu o prefeito de Araraquara, Edinho Silva, para uma conversa. O então prefeito estivera com Gilberto Carvalho, chefe de gabinete de Lula, acompanhado do deputado Rui Falcão (PT-S). Ao final da conversa, Gilberto sugeriu que todos fossem até o gabinete de Lula para "dar um abraço no presidente" junto com o deputado Rui Falcão (PT-SP) para uma conversa agendada por seu chefe da gabinete, Gilberto Carvalho.
"Edinho, prefeito que não faz sucessor não vale nada", disse Lula ao antigo companheiro. "Você vai ter de fazer o seu sucessor", insistiu, antes de arrematar: "Eu vou fazer o meu sucessor". O presidente fez uma pausa, olhou sorrindo para Rui Falcão e emendou: "Ou a minha sucessora". Falcão riu. Lula evidentemente brincara com a eventualidade de a candidata ser Marta Suplicy, a ex-prefeita de São Paulo a quem o deputado é muito ligado.
Marta, aliás, há muito tempo já se convencera de que a candidata de Lula a presidente da República seria uma mulher. "Poderia ser eu, a Marina ou a Dilma. A Marina deixou o governo". Como Lula nunca tratou do assunto com ela, a ex-prefeita de São Paulo não teve dificuldades para concluir que a escolhida seria Dilma.
Havia outro integrante do governo com a mesma opinião: o ministro da Educação, Tarso Genro, agora novamente candidato ao governo gaúcho. O ministro, na realidade, sentia-se preterido por Lula, porque sempre teve a Presidência da República em seus planos políticos, e chegou a cunhar uma frase com certo desdém à indicação de Dilma (o que ainda não havia ocorrido), como se a ministra da Casa Civil tivesse sido escolhida por exclusão, uma indicação "óbvia" na medida em que sobrara apenas Dilma, depois que José Dirceu e Antonio Palocci deixaram o governo.
Além dos vazamentos, Lula deu a Dilma efetivamente as funções de primeiro-ministro: o PAC, o programa Minha Casa, Minha Vida, o pré-sal, que são os programas mais importantes do governo. Internamente e para a base de sustentação do governo não havia mais dúvidas: Dilma se tornara o "candidato natural" que o PT deixara de ter desde que os "caídos" José Dirceu e Antonio Palocci deixaram o governo.
Lula e seus auxiliares mais próximas dizem que a escolha de Dilma não foi um "dedazo", a indicação de um homem sozinho, mas o resultado de um processo de costura política que se estendeu por quase três anos.
O entendimento entre Lula e Dilma sobre a candidatura pode ter sido tácito, como contam hoje os mais próximos assessores do presidente. Mas o PT foi literalmente enquadrado. Aliás, quando Lula conversou com o PT, Dilma já se tornara a "candidata natural" e começava um avanço consistente nas pesquisas de opinião. Foi na reunião de novembro de 2009, durante a eleição dos novos dirigentes petistas eleitos no Processo de Eleição Direta (PED).
Lula disse aos comandantes petistas que a escolha de Dilma Rousseff era "para valer", que faria tudo por sua eleição e exigiria do partido as contrapartidas necessárias à execução do projeto. E aproveitou para ressaltar algumas das qualidades que via na candidata: "É mulher, está fora das turbulências do governo e é a Mãe do PAC".
Se fosse um "dedazo" não emplacava, dizem os mais próximos a Lula. Havia até dois candidatos a "candidato natural" do PT, após a queda de Dirceu e Palocci: o ministro do Desenvolvimento Social, responsável pelo programa Bolsa Família, e o atual governador da Bahia, Jaques Wagner. Mas o primeiro não demonstrava apetite pela disputa e o segundo queria disputar o governo da Bahia e também tinha dificuldades de trânsito junto ao PT (ainda é uma aposta para o futuro).
O erro da teoria do "dedazo", segundo o grupo que desde o início trabalhou a candidatura Dilma, era acreditar que a ministra era mesmo um "poste", quando todos no Palácio do Planalto já sabiam que ela era a principal pessoa do governo. Afirma-se até que foi a ministra da Casa Civil com mais poder, na história recente. Inclusive mais poderes do que José Dirceu. Podia ter uma dificuldade aqui, outra ali. Mas era uma pessoa com estrutura. Prova disso é que ela passou no PT, com a dificuldade que é o partido em suas disputas internas.
"Passou porque ela segurou o governo, essa é que é a verdade, ela é a segunda pessoa desse governo. Não foi um "dedazo". Pelo contrário, foi a escolha natural. Se tivesse Palocci, Dirceu, Genoino, nós teríamos uma briga fratricida. As circunstâncias da luta política foram derrubando todos", disse ao Valor um dos integrantes da força-tarefa que ajudou a construir a candidatura de Dilma Rousseff.
Lula investiu nisso. E segundo se avalia hoje no Palácio do Planalto contou com a ajuda da imprensa e da oposição. Primeiro, porque tanto uns quanto os outros teriam insistido na ideia de que Lula queria o terceiro mandato. Todos os auxiliares e amigos de Lula dizem que ele nunca falou em terceiro mandato.
Um deles acrescenta que o presidente não gostaria de mudar a Constituição para se beneficiar, como fez Fernando Henrique Cardoso ao propor ao Congresso a emenda da reeleição, em 1997. Aliás, um desses amigos conta que Lula agora até que se arrependeu por não lutar pelo terceiro mandato, pois vê nas pesquisas a certeza de que teria uma votação consagradora.
A discussão sobre o terceiro mandato deu pelo menos um ano e meio de folga para Lula ir construindo a candidatura Dilma. Ela podia crescer nas pesquisas de opinião sem estar na vitrine - e o governo só tinha que responder sobre terceiro mandato. Afirma-se hoje, entre vários dos auxiliares de Lula, que ele muitas vezes estimulou de propósito a discussão. Enquanto trabalhava nos bastidores para a indicação de Dilma, a oposição disputava entre José Serra e Aécio Neves quem seria o candidato do PSDB, o que a deixou imobilizada até a decisão de Aécio Neves de se candidatar ao Senado por Minas Gerais.
A discussão sobre o terceiro mandato só acabou em 2008, ainda assim porque não havia mais tempo hábil para a aprovação de uma emenda constitucional. O Senado também mandara um sinal ao governo no final de 2007, quando derrubou a proposta de prorrogação da CPMF, o "imposto do cheque". Ali ficou claro que o governo não teria maioria constitucional para aprovar uma emenda permitindo o terceiro mandato.
Lula costuma dizer que aprendeu "uma coisa" no exercício da Presidência da República: "No presidencialismo não existe ministro forte. Do ministro se espera que ele seja competente. Forte ele não pode ser, porque forte só tem o presidente da República. Porque se ele está forte, os adversários vão todos em cima dele."
Foi exatamente o que aconteceu com Dilma, do ponto de vista do Palácio do Planalto. Ela ficou forte. "E ela ficou forte por quê? Porque para o governo e o presidente começou a ficar claro que ela era a solução natural." O primeiro ataque destinado a desestabilizar Dilma, segundo se registra no governo, foi a crise dos cartões corporativos da Presidência. Um outro ministro, sem perspectiva de poder, teria saído do governo. "Mas como ela é que tinha perspectiva de poder, o presidente não poderia nunca descartá-la. Ele tinha que replicar a aposta nela", conta um ministro.
Lula replicaria a aposta em Dilma em pelo menos outras três ocasiões: o caso do dossiê sobre gastos de Ruth Cardoso, mulher do presidente Fernando Henrique Cardoso, na eleição de José Sarney (PMDB-AP), e agora, ao demitir rapidamente sua sucessora na Casa Civil, Erenice Guerra, envolvida em acusações de tráfico de influência que ameaçavam contaminar a campanha da eleita por Lula para ser a primeira mulher a presidir o país.
Dilma participou de todas as reuniões nas quais foram tomadas as decisões mais delicadas, como bancar a eleição de Sarney e assegurar o apoio do PMDB à chapa. Ela participava, mas o que se esperava dela nessas questões não era responsabilidade de ser a primeira pessoa. Mas nas questões do pré-sal, do Minha Casa, Minha Vida, e do PAC o que se esperava dela era condução.