Título: Caso Erenice teve impacto no voto feminino em Dilma
Autor: Jordão , Fàtima
Fonte: Valor Econômico, 04/10/2010, Política, p. A10

A mulher foi uma das protagonistas no primeiro turno da eleição presidencial, afirma a socióloga Fátima Pacheco Jordão, do Conselho Diretor do Instituto Patrícia Galvão. Além do bom desempenho de Marina Silva (PV) ter sido decisivo para um segundo turno, houve também um recuou nas intenções de votos femininos para a candidata petista, Dilma Rousseff, em especial depois das denúncias contra outra mulher, sua ex-auxiliar Erenice Guerra. Especialista em pesquisa de opinião e assessora da TV Cultura, Fátima observa, em entrevista, que Marina dever dar prioridade à neutralidade no segundo turno, mas o PV e seu eleitorado devem optar pelo tucano.

Valor: Ao que a Sra. atribui o segundo turno?

Fátima Pacheco Jordão: O eleitor aprendeu a lidar com o primeiro e o segundo turnos. Há algumas eleições, o eleitor, ainda que preferindo um dos candidatos, leva a um segundo turno para enxergar melhor. O processo eleitoral, que é longo e tem cobertura extensa, dedica-se ao eleitor apenas no fim. Até julho, quando há a indicação dos candidatos, a cobertura da mídia foca mais o jogo de poder do que a política eleitoral, que é coberta só depois que começa o horário eleitoral gratuito. Esse ritual dá ao eleitor um período curto para avaliar as diferenças. Como o processo eleitoral é conflitivo, o eleitor precisa de mais tempo para uma melhor avaliação de quem é quem. Um dado relevante é que Dilma começou a perder votos após as denúncias, sobretudo as contra Erenice Guerra, quando uma mulher entrou como "player" importante no processo.

Valor: A questão do gênero foi determinante nestas eleições?

Fátima: Essa questão não foi considerada pelos analistas políticos, mas esteve o tempo todo subjacente entre as candidatas. Um dos atributos virtuosos do desempenho feminino na política é que a mulher é vista, por homens e mulheres, como agregadora de valores positivos de ética, de compromisso de trabalho, de capacidade de entendimento do cotidiano. Dilma se prevaleceu disso, além do apoio do presidente e da agenda da continuidade. Mas quando entrou o problema com uma outra mulher ligada à candidata, o quadro mudou. Isso a desgastou, sobretudo com o eleitorado feminino. Ao longo da campanha, Dilma sempre teve menos voto entre as mulheres do que entre os homens. Isso variava em torno de 10%, mas quando o escândalo estourou, a brecha de Dilma já caíra para 5%. Estava quase neutralizando essa diferença na preferência do eleitorado, mas a tendência se reverteu.

Valor: É uma rejeição feminina?

Fátima: Não. É uma percepção. Dilma ganhou cinco pontos percentuais e se distanciou de José Serra depois da entrevista que deu ao "Jornal Nacional", quando estava sozinha. E, por uma estratégia, não citou Lula. Buscou o máximo de autonomia possível. Nesse ponto, desbloqueou o voto feminino. Esse "gap" cresceu depois do escândalo Erenice.

Valor: Segundo turno zera tudo?

Fátima: Não acredito nisso. Acho que há um caleidoscópio que muda de posição e as pecinhas se acomodam em outro padrão.

Valor: Qual deve ser a estratégia de José Serra (PSDB) agora? Mudar o discurso e usar a imagem de FHC?

Fátima: Se começasse como favorito, o que não acontece, Serra deveria manter o isolamento verificado até agora. Mas sai perdendo, considerando a simulação de segundo turno. Serra tem não só de abrigar FHC, como todas as forças de apoio, passando por Aécio Neves (PSDB-MG), pelas feministas, pelos ambientalistas que poderão advir do PV e pelo movimento negro. Sua posição é difícil. Como fez uma campanha muito estreita do ponto de vista político, reorganizá-la é fundamental. Mesmo perdendo, poderá liderar um processo de rearticulação, de renovação temática. Nessa eleição, houve um crédito para a continuidade, mas ela mostra que a sociedade não quer só isso. Nisso, a estratégia de Serra, de não bater em Lula, estava certa. Só que, no conteúdo, ele focou na coisa de ter mais ou menos unidades de saúde. Ele não tratou de Fernando Henrique como um governo que é responsável por boa parte do bom desempenho do governo.

Valor: Como fica o apoio da Marina no segundo turno?

Fátima: O PV vai fazer alianças e, provavelmente, vai apoiar o Serra. Mas a Marina deve ficar distante desses acordos. Assim como Lula, Marina tem prerrogativas. Nessas eleições, ganhou autonomia. Conseguiu redesenhar o PV e a questão ambiental. No fim das contas, é a pessoa que levou o Serra ao segundo turno. O PV pós-Marina é outro. Pesquisas mostram que 50% votam em Serra, 30%, em Dilma e 20% não sabem. Com a possível adesão do PV ao Serra e o compromisso com a questão ambiental, 65% votariam em Serra e 35% em Dilma.

Valor: O PMDB ganha força no segundo turno?

Fátima: Sem dúvida. A capacidade do PMDB é ligada ao constante rearranjo dessa federação. O PMDB é a mais camaleônica das forças políticas brasileiras. Tem força na medida em que, uma vez superadas todas as disputas regionais, pode se apresentar como única perspectiva de força frente ao governo Dilma, do qual Michel Temer é vice. Se não houvesse segundo turno, PMDB e Dilma se enfraqueceriam. Isso porque, ao ganhar no primeiro turno, a situação política de Dilma seria mais precária.

Valor: Como assim?

Fátima: Dilma tem aliança ampla e o PMDB é forte. Tenho viés do eleitorado, pois sou socióloga, não cientista política. Ganhando no primeiro turno, parodoxalmente, Dilma se enfraqueceria do ponto de vista do eleitor, já que as rearticulações seriam de bastidores. O eleitorado não veria e se decepcionaria rapidamente, diminuindo a capacidade de liderança de Dilma. Com isso, ela entraria na faixa de eleitos sem autonomia. No segundo turno, as alianças, tanto da situação como da oposição, terão de ser feitas à luz do eleitor. O resultado será uma posição mais consolidada de quem ganhar no dia 31. É um dado novo nas eleições, já que o segundo turno não enfraquece o favorito. Para o eleitor, está clara a relação Dilma-Lula, mas não está evidente a relação Dilma-vice.

Valor: A força de Marina redimensiona a radicalização PT e PSDB?

Fátima: Sem dúvida. Há novas demandas na sociedade, com novo posicionamento frente ao consumo e a visão de um eleitorado jovem, importante do ponto de vista de agenda. A Marina sai fortalecida, ao destacar a questão ambiental e manter sua autenticidade.

Valor: Há uma relação entre o capital eleitoral dos candidatos e o capital político deles?

Fátima: Com exceção de Marina, os capitais políticos dos candidatos Serra e Dilma não foram equivalentes às suas votações. Serra teve uma votação abaixo de seu capital político. O de Dilma é mais frágil do que seu capital eleitoral.

Valor: Como o eleitor calcula o benefício das políticas econômicas e a questão ética?

Fátima: O eleitor privilegia vantagens objetivas que venha a ter com esse ou aquele candidato. Mas aceitar que a Dilma é a continuidade de Lula não é automático. O eleitor checa a capacidade do indicado ser portador desse bem maior que é a continuidade. As denúncias não afetaram a confiança do eleitor na ética no sentido da corrupção, mas no sentido da ética em relação ao compromisso.