Título: Fortalecer a região beneficia o próprio Brasil, diz De la Rúa
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2010, Especial, p. A14

O Brasil decolou e a Argentina não por dois motivos básicos, na opinião do ex-presidente argentino Fernando de la Rúa. Em primeiro lugar, o Brasil obteve apoio do FMI em 1998, não quebrou, não teve de dar calote na sua dívida; já a Argentina, para ele, foi sacrificada pelo FMI. O segundo fator é o "grande progresso na política brasileira", que gerou previsibilidade e confiança.

De la Rúa admite que a situação argentina no início desta década era pior que a brasileira, principalmente por causa da convertibilidade, a política de câmbio fixo que cotava o dólar a um peso. Ele diz que queria abandonar essa política, "que eu herdei", mas o contexto econômico desfavorável, marcado pela recessão, alto endividamento, juros altos e baixo preço das commodites, não permitia fazer isso ordenadamente. A Argentina pediu ajuda, mas o FMI negou.

"Para a Grécia, o FMI ofereceu ¿ 30 bilhões agora. Para mim, recusaram US$ 1 bilhão", lamenta.

De la Rúa governou a Argentina por pouco mais de um ano, entre 10 de dezembro de 1999 até 20 de dezembro de 2000, quando renunciou em meio a protestos reprimidos violentamente em Buenos Aires. Ele se diz vítima de um golpe civil, orquestrado pelo então governador de Buenos Aires, o peronista Eduardo Duhalde, a quem derrotara na eleição e que em seguida assumiria a Presidência. "O peronismo não deixou terminar nenhuma governo de outro partido", dos anos 60 até hoje.

"Me pergunto todos os dias se eu fiz bem ou mal em renunciar, mas era isso que o golpe queria."

Afastado da política desde sua renúncia, De la Rúa, de 73 anos, participou ontem, em São Paulo, de seminário de relações internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco. Ele falou sobre o novo papel do Brasil no Século XXI. "Na Argentina seguimos com interesse o que se passa no Brasil, com simpatia e até com orgulho de latino-americanos, de ver que um país da região pode fazer isso."

Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida por De la Rúa ontem ao Valor.

Valor: Qual é o novo papel do Brasil nas relações internacionais?

Fernando de la Rúa: O extraordinário desenvolvimento do Brasil significa grandes possibilidades e grandes responsabilidades em relação à região. Uma delas é retomar o caminho do Mercosul, que hoje não é prioridade na agenda e tem de voltar a ser. Em relação aos países do Bric, o Brasil tem grandes vantagens: é uma democracia estável, não tem os problemas sociais da Índia, não se limita a exportar armas e petróleo, como a Rússia. Mas tem outra vantagem: integra uma região de países emergentes produtores de alimentos e recursos naturais, o que aumenta o seu potencial. Por isso, acho que o Brasil deve olhar mais para a região.

Valor: O Brasil não faz isso?

De la Rúa: Há gestos amáveis, amistosos, e nada mais. Já nos esquecemos do processo de integração. O Mercosul não é tema da campanha eleitoral no Brasil. Isso significa perder uma oportunidade, pois juntos podemos crescer mais. Fortalecer a região fortalece o Brasil. O Brasil está sendo a grande locomotiva do crescimento regional. A importação de carros e autopeças feitos na Argentina ajuda o nosso PIB, de modo que o Brasil tem uma grande importância para todos os países da América Latina. O Brasil quer dar um salto para ocupar uma posição mais preponderante no plano internacional. Pelo seu modelo, baseado na democracia, na previsibilidade, na inclusão social, é um exemplo.

Valor: Esse salto internacional reduz o interesse pelo Mercosul?

De la Rúa: O problema do Mercosul vem de antes. É uma grande ideia, mas resumir-se numa união aduaneira trouxe dificuldades. Ficamos parados em disputas de autopeças e frangos, e não avançamos na integração política, cultural, institucional. Falto ao Mercosul um marco institucional. E sobretudo falta uma maior vontade integradora.

Valor: Da parte de quem?

De la Rúa: Dos dois países. Criaram-se situações de desconfiança por problemas práticos de comércio, mas agora a grande expansão brasileira diminui o fator concorrência que nos afetava antes e permite avançar mais rapidamente. Essa situação excepcional do Brasil marca a hora em que se deve reforçar o Mercosul. Na prática, estamos superando essa barreira pela iniciativa privada. Mais de 400 empresas brasileiras investiram já na Argentina, e muitas empresas argentinas investiram no Brasil.

Valor: O Mercosul é um tema importante na Argentina?

De la Rúa: Quase não se fala do Mercosul na Argentina. Fala-se mais da Unasul, que é uma ferramenta política criada pelo Brasil para uso do Brasil, para resolver problemas políticos passando ao largo do Mercosul. Em maio falou-se muito, pois tivemos um problema aduaneiro, quando a Argentina anunciou restrições a importações brasileiras. Isso foi superado, mas esse tipo de conflito é um tema menor em relação ao grande desafio do crescimento. Esta é uma época excepcional para a América Latina. A crise nos países mais ricos faz crescer os fluxos de capitais para os emergentes. E nisso, a presença do Brasil, a situação do Brasil joga um papel importante. A imagem do Brasil reforça a confiança no resto da América Latina. Se o Brasil está bem, estamos bem todos. Mas se algo acontecer ao Brasil, criaria problemas para todos.

"O FMI apoiou o Brasil, mas negou apoio à Argentina. Isso foi fundamental, marca os caminhos e as diferenças"

Valor: Este novo papel do Brasil é visto com naturalidade na Argentina, após décadas de desconfiança mútua e concorrência?

De la Rúa: Sim, com admiração e até com orgulho, pois o Brasil é parte da América Latina e somos associados no Mercosul. Fico feliz por ver esse enorme crescimento do Brasil. O Brasil era uma potência contida, mas 15 anos de estabilidade política e econômica permitiram esse desenvolvimento. Há grandes desafios: precisa acabar com o trabalho infantil, resolver o problema das favelas, da violência. E, com a Argentina, temos desafios comuns: a luta ao narcotráfico, ao terrorismo, à lavagem de dinheiro.

Valor: O sr. vê o risco de um excesso de triunfalismo no Brasil?

De la Rúa: Alguns dizem que sim. O Brasil tem de dar o grande salto, mas se o fizer com soberba e triunfalismo, pode saltar no vazio. Acho que o Brasil vem crescendo com sensatez, com políticas gradualistas, sem choques abruptos, sem dar passos para trás. Isso significa que avançará bem.

Valor: Existe na região a percepção de imperialismo brasileiro?

De la Rúa: Não percebemos isso. Por anos, houve uma concorrência entre Argentina e Brasil pela primazia. Na crise de 2001, quando jogaram contra nós todos os fatores internacionais adversos, o FMI negou apoio à Argentina, mas deu apoio ao Brasil. Isso foi fundamental, é o que marca os caminhos e as diferenças [entre os dois países].

A Argentina teve a crise política e declarou default, o que condicionou depois a confiança internacional para investir no país. O Brasil não teve crise política, evitou o default e virou um grande receptor de investimentos. Por isso, o Brasil atrai hoje 60% dos investimentos que chegam à América Latina, e a Argentina atrai só 3%.

Mas liderança tem um preço, quem exerce a liderança tem a responsabilidade de ajudar os outros. Não creio que haja uma reivindicação de liderança, mas sim um efeito positivo do crescimento do Brasil que ajuda o resto da região.

Valor: Qual é essa responsabilidade para o Brasil?

De la Rúa: Não obstruir as importações dos outros países. Abrir caminhos de cooperação tecnológica - Brasil e Argentina precisam de desenvolvimento tecnológico e poderiam fazer acordos para isso. O Brasil pode facilitar, com investimentos, o desenvolvimento dos outros países do Mercosul, em vez de competir com eles. É a atitude. O Brasil, com seu grande poder econômico, se competir com os outros países [da região] e fizer uma política contra eles, está renegando o seu papel latino-americano. Por outro lado, se ajudar no desenvolvimento e no crescimento, beneficia a si mesmo. Ser a oitava economia mundial e estar numa região em crescimento é o melhor cenário possível para o Brasil.

Coordenar os programas de infraestrutura com os outros países é outra forma de integração. É preciso avançar nos mecanismos para compensar as diferenças, sobretudo entre Brasil e Paraguai.

Valor: A eleição no Brasil muda alguma coisa para a Argentina?

De la Rúa: Nada sugere uma mudança abrupta das políticas em andamento no Brasil. Haverá continuidade, ainda que não continuísmo, mesmo que um possa ser mais estatista, o outro mais liberal.

Prova disso é que o debate neste surpreendente segundo turno, que ninguém esperava, deslocou-se para o aborto, para a questão religiosa. Não se discutem temas econômicos. O governo que vier terá de tomar algumas medidas sobre a taxa de câmbio, a taxa de juros, mas nada que provoque sobressaltos. Haverá definições sobre o que fazer a respeito da "guerra cambial", como definiu o ministro Guido Mantega. Isso gera tensões no comércio internacional.

Valor: O câmbio preocupa?

De la Rúa: No Brasil, após as eleições, haverá mais pressão do setor produtivo e dos exportadores para uma correção da taxa de câmbio. Isso é delicado. De um lado pode favorecer a produção, mas de outro vai afetar o poder de compra. Uma desvalorização no Brasil não é indiferente ao resto da região. Muitas vezes é necessário levar em conta esses interesses e se comunicar. Tivemos o grave problema da desvalorização do Brasil, em janeiro de 1999, que condicionou muito a situação da Argentina.

Há também preocupação na região por causa da grande entrada de capitais no Brasil, devido às taxas de juros. Se isso não for administrado adequadamente, pode criar uma situação de bolha.

Valor: Os Kirchner são favoritos na eleição na Argentina?

De la Rúa: Falta um ano e ainda não podemos dizer. As pesquisas só indicam a percepção positiva ou negativa em relação aos possíveis candidatos, mas não se sabe a intenção de voto. O dado hoje mostra que há uma opinião negativa [dos Kirchner]. Se isso se traduzirá em voto, eu não sei. Não parece, porém, que eles ganhariam no primeiro turno. Mas o governo gasta muito em publicidade, ocupa muito espaço nos meio de comunicação, e isso tem efeito. Além disso, os indicadores econômicos deste ano são positivos. O maior crescimento de toda a região e o empurrão dado pelo Brasil criam uma boa situação econômica.

Valor: Por que Brasil e Argentina seguiram rumos tão diferentes?

De la Rúa: A Argentina, como o Brasil, foi favorecida pelos preços altos das commodities a partir de 2003. Eu tive isso contra no meu governo. A soja na época estava em US$ 70, US$ 80, e hoje passou para US$ 300. Se eu tivesse a soja a esse preço, a história teria sido diferente. Eu ainda sofri com a desvalorização no Brasil. Quando renunciei, estava começando a participação maior da China nos mercados. Menos de um ano depois, o cenário era outro.

Teria sido diferente se a Argentina tivesse evitado o default, um erro enorme contra o qual lutei fortemente e que foi o esforço principal do meu governo, até me derrubarem, pois sofri um golpe civil. Aí veio o default e a desvalorização. Isso ainda conspira contra a confiança na Argentina. Já o Brasil, que não foi ao default, teve toda a confiança dos mercados para se desenvolver. Quando tivermos novamente a confiança internacional, os investimentos voltarão.

Valor: A atuação do governo hoje ajuda a volta da confiança no país?

De la Rúa: Há um esforço nesse sentido, com o pagamento da dívida, ainda que com o forte desconto. Depois se questionou a dívida com o Clube de Paris e há um conflito com o FMI, pois o governo se opõe a que o FMI faça auditoria da economia como parte do processo de acerto da dívida com o Clube de Paris. Estamos travados por isso, um conflito que freia os investimentos dos principais países credores, como a Alemanha. A administração mais conflituosa dessa questão inibiu o desenvolvimento. Já o Brasil, com Cardoso e com Lula, se moveu por consenso. Quando Cardoso terminou o seu mandato, havia uma grande dívida externa, havia problemas internacionais, mas não houve ruptura com Lula. No meu caso, o Partido Justicialista atuou para me derrubar.

Valor: Por que o sr. renunciou?

De la Rúa: Porque levaram a violência às ruas; porque a oposição tinha maioria no Congresso e havia anunciado a rejeição ao Orçamento, sem o qual eu não tinha argumentos para a defesa financeira internacional; e para evitar a saída da Argentina de fóruns internacionais que exigem a continuidade democrática. Pergunto-me todos os dias se fiz bem ou mal, mas era isso que o golpe queria. Não havia possibilidade de resistir a isso sem grande sofrimento para o país.

Valor: Quem deu o golpe?

De la Rúa: Já disse muitas vezes: o Partido Justicialista da província de Buenos Aires [chefiado por Duhalde], alguns do meu próprio partido e o FMI. O FMI estava decidido, com a sra. Anne Kruger, representante dos republicanos americanos. Ela levantava a teoria do risco moral, queria dar um exemplo ao mundo, e a Argentina foi a cobaia. O próprio Kirchner diz isso. Se os EUA tivessem tido outra atitude, por meio do FMI, não teríamos passado o que passamos.

Eu estava tentando remediar uma situação que não havia criado. Reduzi o gasto público em US$ 3 bilhões em 2000, mas 2001 era um ano difícil, pois havia muitos vencimentos da dívida e todos os fatores da economia jogavam contra. Jogavam contra todos, mas nós tínhamos problemas maiores.

A recessão, com a situação em que estava o governo, não podia ser superada. Isso foi se agravando. E o povo, você sabe, tem grandes demandas. Às vezes você consegue convencer que é preciso paciência, mas às vezes não. Em menos de um ano, a situação seria outra, e teríamos evitado o sofrimento que tivemos depois. Teríamos evitado o default, e a desvalorização não seria tão brusca como acabou sendo, com forte queda de PIB e salários.

Há também o fator político interno. O peronismo não deixou terminar nenhum governo de outro partido, de Frondisi [no começo dos anos 60] até o meu. Isso é um forte sinal de instabilidade.

No Brasil, ao contrário, consolidou-se um sistema bipartidário, apesar de fortes disputas e do ardor das campanhas. Houve um grande progresso na política, na democracia brasileira. Isso traz nitidez e transparência, traz previsibilidade, o que aumenta a confiança. Na Argentina também temos um sistema bipartidário, mas com um partido muito agressivo em termos de chegar ao poder. Se não está no governo, ele exerce grande poder por meio dos sindicatos.

Valor: O sr. lamenta alguma decisão do seu governo?

De la Rúa: Em geral, em situação de crises ou emergência, um presidente está diante de alternativas forçadas. É muito difícil em vez de uma coisa fazer outra, porque, se não se faz o que a realidade exige, as consequências são tremendas. Mais que lamentar decisões, dói em mim certas decisões que não queria ter tomado. Ninguém quer uma corrida bancária. Mas, se o FMI diz que a Argentina pode ir a default, as pessoas vão aos bancos e querem sacar seus dólares. Nesse caso, o dever de um governante é parar a corrida bancária, o que é uma decisão muito dolorosa. Mas eu evitei me apropriar dos depósitos, justamente o que Duhalde fez, quando assumiu em seguida.

Valor: A convertibilidade era sustentável? Aqui, dizia-se que não.

De la Rúa: Era sustentável porque tínhamos reservas para isso. Acontece que a convertibilidade era uma atadura, que vinha do governo Menem. Para supera-lá, era preciso uma condição econômica mais favorável, senão aconteceria o que aconteceu quando Duhalde desvalorizou: aumentam a pobreza e o desemprego, e os salários ficam bem abaixo da inflação.

Eu queria criar as condições para sair da convertibilidade. Uma condição importante era a renegociação da dívida externa, o que teria evitado o default reduzindo os elevadíssimos juros que pagávamos. Isso ficou difícil nas condições em que recebi o governo, com dívida alta, recessão, preço baixo das commodities. Era uma tempestade perfeita, como se falou.

Valor: Como atuou o Brasil?

De la Rúa: Queria ter visto mais solidariedade na crise de 2001, quando o FMI atuou contra a Argentina e preservou o Brasil. Tivemos pouco cooperação do Brasil. O Brasil recebeu apoio, sabia que o FMI atuaria contra a Argentina e não nos transmitiu isso. Compreendo que cada um estava cuidando do seu lado, mas se nos unimos para preservar a democracia, para desenvolver nossas economias, não é desejável que num momento crítico que cada um atue por si.

Valor: A crise argentina tem semelhanças com a atual crise grega?

De la Rúa: Sim, muitas. Eles até têm a convertibilidade, que é o euro, que não permite desvalorizar. A diferença é que o FMI não os agrediu, não se colocou contra. Depois da crise argentina, o FMI mudou e não voltou a fazer isso. Agora, o FMI deu total apoio à Grécia, com ¿ 30 bilhões, mais o apoio da UE. A mim, me recusaram US$ 1 bilhão, o que poderia ter evitado a crise.