Título: Brasil teme um governo enfraquecido e relações bilaterais mais difíceis
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 28/10/2010, Especial, p. A14

A morte de Néstor Kirchner foi recebida com choque no governo brasileiro e abre um período de incerteza nas relações entre os dois países, enquanto a viúva, Cristina Kirchner, não demonstrar que direção tomará o governo com a perda de seu principal articulador político. A morte de Kirchner deve ocupar a presidente com assuntos internos, ao gerar uma disputa surda no peronismo pelo controle no Partido Justicialista. O alvo são as eleições presidenciais de 2011, nas quais Néstor Kirchner apontava como candidato do partido.

Surpreendidos com a morte de Kirchner, autoridades do governo brasileiro evitaram, ontem, especular sobre as consequências para a Argentina e a relação com o Brasil, mas rejeitaram as avaliações de possíveis problemas - feitas reservadamente por integrantes do governo que mantém contato com os argentinos. "Não é momento de pensarmos nisso, mas não vejo motivos de mudanças", disse, ao Valor, o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. "A presidente Cristina tem cabeça própria, é uma pessoa de grandes convicções, a favor da integração."

Outros assessores diretos de Lula adotam a mesma argumentação. Um ministro descartou com veemência comparações, feitas na Argentina, a outra morte traumática no país, a do presidente Juan Perón, que deixou no posto a vice e esposa Maria Estela Martinez, a Isabelita, que se mostrou incapaz de liderar as correntes peronistas. Cristina, diferentemente de Isabelita, tem carreira política própria, tarimba política e é um "quadro", definiu o ministro, usando o jargão para políticos com iniciativa e disciplina partidária.

"Ele era uma pessoa muito estimada, trabalhou muito não só pela recuperação econômica argentina, pela quebra de paradigmas anteriores que não funcionaram, mas também pela integração da América do Sul", elogiou Amorim. Ele, como pelo menos dois outros integrantes graduados do governo lembravam ontem a atuação de Kirchner, como secretário-geral da União das Nações da América do Sul (Unasul), cargo no qual, com o Brasil, atuou para reduzir atritos entre os governos da Venezuela e da Colômbia, neste ano.

Ao decretar luto oficial por três dias no Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que viaja amanhã ao velório, o tratou como "grande aliado e um fraternal amigo". Lula classificou como "notáveis" seu papel "na reconstrução econômica, social e política" argentina e o empenho "na luta pela integração sul-americana".

Ontem, autoridades minimizavam os atritos entre os dois governos, que começaram no primeiro mandato de Néstor Kirchner quando, para decepção na Casa Rosada, representantes do Brasil no Fundo Monetário Internacional criticaram a moratória argentina decretada por ele. Em 2005, Kirchner chegou a se opor a candidaturas do Brasil em órgãos internacionais a ponto de lhe atribuírem o comentário irônico de que "o Brasil quis eleger até o papa".

O ex-presidente também prejudicou os esforços de consolidação do Mercosul ao incentivar manifestações contra instalação de fábricas de celulose na fronteira com o Uruguai. A disputa levou a Argentina a bloquear liberação de verbas destinadas aos uruguaios no Fundo de Compensação do Mercosul, gerando uma crise só solucionada neste ano, com a eleição de um novo presidente uruguaio.

Amorim insistia ontem que Kirchner foi um grande aliado do Brasil em temas como a negociação da Área de Livre Comércio d as Américas (Alca), nas negociações do Mercosul para entrada da Venezuela no bloco e na Unasul. A tendência, com Cristina, será de continuidade, acredita ele.

Cristina corre o risco de se ver envolvida em assuntos internos, com pouca margem de manobra para negociar concessões no Mercosul, como vem tentando o governo brasileiro, que quer fortalecer acordos do bloco. Néstor Kirchner controlava as alianças e iniciativas de política interna e sua morte deixa sérios problemas políticos para Cristina, entre eles o que fará com Hugo Moyano, o líder da poderosa Central Geral de Trabalhadores, e com as lideranças peronistas até agora postas à sombra.