Título: Morte de Kirchner abre fase de incertezas na Argentina
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 28/10/2010, Especial, p. A14

A menos de um ano das eleições presidenciais, a política argentina entrou ontem em curto-circuito com a morte do ex-presidente Néstor Kirchner, aos 60 anos. Enquanto militantes peronistas rumavam para o velório na Casa Rosada e a poderosa Confederação Geral do Trabalho (CGT) pedia "aprofundamento do modelo", insinuando o desejo de maior participação sindical no governo, líderes da oposição ficaram anestesiados e lançaram sinais de trégua à presidente e viúva Cristina Kirchner. Quem melhor definiu o estado de imprevisibilidade na política argentina foi Rosendo Fraga, diretor do Centro de Estudos Nueva Mayoría: "A ausência de Kirchner deixa a sensação política de que falta o presidente, e é como se estivéssemos nos perguntando o que fará o vice-presidente. É a primeira vez na história do país que a morte de alguém que não seja o presidente gera situação semelhante".

Depois de abrir mão de uma reeleição praticamente certa, em 2007, Kirchner atuava como o articulador político do governo de Cristina e era quem tomava as decisões em matéria econômica.

"Obviamente ele era o candidato à sucessão de Cristina. O que ocorreu muda a política por implosão, porque Kirchner tem sido o eixo dela nos últimos sete anos", afirmou o analista político Jorge Castro, presidente do Instituto de Planejamento Estratégico.

De olho nas eleições de outubro de 2011, Kirchner vinha cobrando os ministros da área econômica para atingir crescimento de 9% do PIB neste ano. Para isso, o gasto público se expande acima de 30% e o governo chegou a pedir a grandes empresas que antecipassem o próximo pagamento de Imposto de Renda, a fim de gerar mais caixa. Foram criados programas sociais, como o que dá 180 pesos (US$ 45) por cada filho de famílias sem emprego formal, e houve vários pacotes de bondades, com distribuição de netbooks a estudantes do ensino médio e de conversores de TV digital para aposentados.

De acordo com a analista de opinião pública Graciela Römer, da consultoria Römer & Associados, as pesquisas mais recentes apontavam a avaliação positiva de Kirchner em 34%. A estratégia oficial girava em torno de elevar a intenção de voto para 40%, o suficiente para ganhar as eleições em primeiro turno, desde que o segundo colocado tenha menos de 30%. "Era a única possibilidade que tinha e tem a Frente para a Vitória", afirmou Römer, em referência à corrente do Partido Justicialista (PJ) fundada por Kirchner. As pesquisas indicam derrota, no segundo turno, contra qualquer candidato.

Algumas novas questões inquietam a Argentina. A primeira delas é quanto a uma eventual candidatura de Cristina à reeleição em 2011, algo até agora pouco cogitado. Outra é a postura que ela adotará sem o marido perto. "Não está claro o que pode acontecer. Ela pode aprofundar uma política de confronto ou abrir-se ao diálogo e à busca de maior governabilidade", avaliou Römer. "O certo é que Kirchner era o homem forte do governo e quem sustentava as posições mais duras. Sua morte significará uma grande mudança."

Para o analista Hugo Passarello Luna, diretor do site Elecciones Argentina, "o kirchnerismo não está esgotado" e Cristina tende a assumir uma posição "mais negociadora". "O futuro será muito pautado por quem serão seus interlocutores", afirmou Passarello. A Casa Rosada divide-se há tempos entre ministros e auxiliares mais ligados a Néstor (como o polêmico secretário de Comércio, Guillermo Moreno) e os "cristinistas" (como os ministros da Economia, Amado Boudou, e das Relações Exteriores, Héctor Timerman).

Com mais de cinco pré-candidatos, os governistas dissidentes, que vinha debatendo quem teria mais chances de superar Kirchner em um eventual segundo turno, tendem a ver uma briga ainda mais acirrada pela postulação. Pela União Cívica Radical (UCR, de oposição), disputam a indicação o vice-presidente Julio Cobos e o deputado Ricardo Alfonsín.