Título: Acumular mais reservas é enxugar gelo e tem custo fiscal alto, afirma Pessôa
Autor: Lamucci , Sergio
Fonte: Valor Econômico, 13/10/2010, Brasil, p. A8

Valor: Administrar o câmbio é o maior desafio do próximo governo?

Pessôa: Na conjuntura atual, esse é o maior desafio. Mas nós precisamos de formas mais criativas para tratar desse problema. Essa política de comprar reservas não é sustentável no longo prazo. Valor: Como o Brasil deve reagir à guerra cambial hoje em curso?

Samuel Pessôa: É necessário fazer alguma coisa, mas não dá para continuar reagindo pela acumulação de reservas. O custo fiscal é muito alto. Enquanto os juros internos forem muito maiores que os externos, não dá para reagir dessa forma. Acho que nós devemos deixar o câmbio se valorizar mais. Com isso, a poupança externa aumenta, nós importamos mais ainda, o que coloca a inflação no chão, permitindo que se reduzam os juros. Eu vou equilibrar a economia com uma poupança externa maior e um juro mais baixo.

Valor: O governo parece querer fazer o oposto, já que deve colocar mais um jogador nesse mercado - o fundo soberano.

Pessôa: Ele vai ficar enxugando gelo. Acho que isso mantém o câmbio mais desvalorizado, porque essas intervenções conseguem esse efeito. Mas ele tem que fazer isso permanentemente e pagar o custo fiscal permanentemente.

Valor: Que medidas o governo precisaria adotar para não precisar mais acumular reservas?

Pessôa: Primeiro, tem que ir para a valorização mesmo. É deixar o câmbio se valorizar, a inflação cair, importar mais e reduzir os juros. O problema é que essa medida prejudica a indústria. Então é necessário ajudar o setor, aumentando a competitividade lá fora e aqui dentro. Nós temos que estimular os brasileiros a consumir menos serviços e mais produtos industriais.

Valor: Como se faz isso?

Pessôa: Por mecanismos tributários. É necessário tributar os outros setores e subsidiar a indústria. O que acho mais eficiente é recriar a CPMF e, como contrapartida, desonerar integralmente a folha de salários da indústria de transformação.

Valor: Por que apenas a indústria de transformação?

Pessôa: A indústria extrativa mineral vai bem, porque é uma de nossas vantagens comparativas. Nós temos minério, petróleo, não preciso proteger essa indústria. A agricultura sente um pouco, mas ela também é uma de nossas vantagens comparativas. Relativamente ao resto do mundo, a nossa agricultura é muito eficiente. Eu não preciso me preocupar com os serviços, porque o mercado internacional não consegue competir com o setor. O segmento que nós temos que proteger é a indústria de transformação, que já enfrenta um problema estrutural. Não é que o Brasil vá virar uma fazenda, mas é de se esperar que a China, um país com 1,5 bilhão de pessoas que poupam, trabalham e investem muito, coloque a oferta de bens manufaturados em outro lugar para competir com o mundo todo. A nossa indústria vai se reduzir, porque parte do problema é estrutural e não vai mudar. Mas, além disso, há uma questão mais conjuntural, que é a saída dos países desenvolvidos da crise. Os EUA, por exemplo, estão querendo exportar um ajuste estrutural para o mundo todo.

Valor: O governo elevou o IOF de 2% para 4% para aplicações em renda fixa. Como o sr. avalia a medida?

Pessôa: Eu não tenho nada ideologicamente contra reduzir a mobilidade do capital. Entendo que, num momento agudo, possa haver a necessidade de se adotar esse tipo de restrição. É algo que pode ser adotado emergencialmente, mas em curto espaço de tempo tende a ser driblado. A não ser que que se faça uma centralização do câmbio como faz a China, mas a China pode fazer isso porque ela não precisa de capital, já que tem muita poupança. Ela precisa de investimento estrangeiro direto para absorver tecnologia, mas não porque necessita de capital. A China pode ter restrições permanentes, pode fazer algo mais draconiano. Já o Brasil, não, porque nós somos pouco poupadores. Nós precisamos de capital.

Valor: Há analistas que propõem outras medidas, como a quarentena, tributando o capital estrangeiro de acordo com o tempo de permanência no país.

Pessôa: São mecanismos de controle de capitais, parecidos com o IOF. Têm eficácia reduzida. Pode ser que funcionem por um ou dois trimestres, mas depois perdem a eficácia. E a crise dos países desenvolvidos deve levar mais tempo.

Valor: O custo de acumulação de reservas está elevado demais?

Pessôa: Sim. As reservas são algo como 15% do PIB. Considerando um diferencial entre os juros internos e externos de 4%, o que é conservador, dá 0,6% do PIB por ano. O custo de rolagem da dívida pública, os juros reais pagos, está na casa de 3,8% do PIB por ano. Nós reclamamos do custo de rolagem da dívida pública, que os juros são elevados, e nós ficamos pagando 0,6% do PIB todo ano por causa das reservas?

Valor: Um déficit de 4% do PIB em conta corrente é financiável?

Pessôa: Neste momento, sim. Mas é importante impedir que se crie a fragilidade externa. É preciso desestimular a assunção de dívidas em dólar. Nós não podemos estimular o setor privado a assumir dívida estrangeira. Nós vamos ter que absorver poupança externa, mas na forma de renda variável. Pode ser bolsa, investimento estrangeiro direto, pode ser capital para financiar o Tesouro, porque isso é em moeda doméstica. Se as empresas conseguirem emitir papéis lá fora em reais, também está ótimo. O que me preocupa é o endividamento em dólar. Se o mundo mudar, as commodities caírem, o câmbio vai para cima, a sua dívida explode, você quebrou.

Valor: Economistas ortodoxos costumam pregar um forte aperto fiscal para que, com isso, seja possível baixar mais os juros e reduzir o diferencial entre as taxas internas e externas. Esse é um bom caminho para evitar o tombo do dólar?

Pessôa: Sim. Quanto mais ajuste fiscal é feito, mais fácil fica. Se for feito um ajuste fiscal forte, a relação dívida/PIB vai cair mais rápido, vai ter mais poupança aqui dentro e o juro vai cair. Mas, subjacente à minha sugestão, há uma hipótese de um equilíbrio político que não permite isso.

Valor: Que outros desafios o sr. vê para o próximo governo?

Pessôa: Essa questão cambial não é uma questão estrutural, me parece um desafio para um ou dois anos, que vai existir enquanto durar a saída das economias desenvolvidas da crise. A questão mais estrutural é o problema da baixa poupança doméstica, que inclusive agrava essa questão conjuntural. Se você pegar dois países idênticos em tudo, o que poupa menos tem câmbio mais valorizado.

Valor: Por que poupamos pouco?

Pessôa: Há uma demanda na sociedade, desde a redemocratização, por criar um Estado de bem estar social num país de renda média. E nós criamos esse Estado. Hoje nós somos provavelmente o país com renda per capita média que mais gasta na área social do mundo. Num país de renda média como o Brasil, com um Estado de bem estar social tão abrangente como o nosso, as pessoas não poupam, porque poupança é um mecanismo de se precaver para o futuro. Não apenas para o futuro, mas para se fazer frente aos riscos de uma economia. É por causa disso que o chinês poupa. Como nós optamos por ter um seguro muito extenso, dada a nossa renda per capita, poupamos pouco. Isso aponta na direção de que vamos ter que crescer com muita poupança externa. A teoria econômica não me dá instrumentos para dizer se é melhor o modelo chinês ou o modelo brasileiro. É uma questão intergeracional. Na China, há uma ou duas gerações se esforçando muito para viver no Primeiro Mundo. Nós queremos fazer essa transição mais lentamente. (SL)