Título: Menos, menos
Autor: Eduardo de Assis , Luis
Fonte: Valor Econômico, 10/11/2010, Opinião, p. A16
A melhora de um paciente que parecia terminal acabou por mudar alguns traços da personalidade brasileira. O Brasil foi durante muito tempo um caso bem caracterizado de estagnação econômica. A purgação da crise da dívida externa na qual nos enredamos a partir do final dos anos 70 nos custou muito tempo. A renda per capita ficou praticamente igual nos 20 anos anteriores ao ano 2000, algo doloroso para um país que não resolveu muitos de seus problemas fundamentais. Parecia um caso raro de decadência não precedida pelo auge - um perigeu espontâneo.
Nos últimos anos, no entanto, o feitiço se rompeu e as coisas melhoraram. Desde a virada do milênio, o produto per capita aumentou mais de 26%. Apenas em 2010 esse crescimento deve atingir 6,5%, o que é mais que o crescimento acumulado entre 1980 e 2000. Isso não só ajuda a explicar o resultado das eleições como estimula o amor próprio e a autoestima, senão a soberba.
O que mudou não é pouco, definitivamente, mas convém não exagerar. A ideia de que o Brasil já é uma "potência econômica" e comprovou seus sólidos fundamentos ao sair quase ileso da crise internacional, por exemplo, exige qualificações. A mais grave crise das últimas décadas teve origem nos países desenvolvidos e resultou da combinação entre juros baixos por muito tempo, desregulamentação do mercado financeiro, crescente sofisticação de produtos derivativos de crédito e forte aumento nos preços dos imóveis. Nada disso aconteceu no Brasil, e, nesse sentido, não é surpresa que a ventania aqui tenha se transformado em aragem.
Para começar, há muito que vivemos na narcose dos juros altos e a desregulamentação do mercado financeiro foi uma ideia que não vingou (Millor Fernandes dizia que uma ideologia quando fica bem velhinha vem morar no Brasil; desta vez não deu tempo). Nossos derivativos são ainda incipientes e sempre estivemos longe de uma bolha imobiliária. A título de ilustração, os preços dos imóveis em Londres alcançaram em 2007 o equivalente a 12 anos de renda líquida do respectivo morador. Não temos esse indicador no Brasil, mas basta uma conta simples com nossa evidência pessoal para notar que não chegamos perto disso.
Se fomos protagonistas na crise da dívida externa, desta vez a crise não nos pertence. Menos pelos fundamentos, mas porque essa crise é coisa de rico. A contaminação para os países em desenvolvimento se deu na proporção de sua dependência em relação aos fluxos comerciais e da participação dos bancos estrangeiros no crédito local. A economia brasileira é marcadamente ensimesmada, a dependência das exportações é pequena e a participação dos bancos estrangeiros no crédito total não é dominante.
Faria bem à nossa modéstia admitir que temos ainda muito o que resolver. A ideia de ritmo chinês de crescimento, nesse sentido, fica entre o exagero e o desvario. Entre 1990 e 2009, nosso Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 70%. O produto da China aumentou 540%. Na última década, quando as coisas melhoraram para nós, o PIB trimestral brasileiro cresceu quatro vezes acima de 7%. Nesse mesmo período, o produto chinês cresceu apenas quatro vezes menos que 7% - e 14 vezes mais que 10%. Se tivessemos crescido como a China desde 1990 nosso produto hoje seria o segundo do mundo e maior que a soma do PIB da França e do Reino Unido. Vamos combinar, portanto, que nosso crescimento é consistente, significativo, importante - mas não é "chinês".
Da mesma forma, e apesar da melhora dos últimos anos, uma seleção de nossos piores momentos mostra uma situação constrangedora. O indicador de competitividade, por exemplo, medido pelo World Economic Fórum nos coloca em 58º lugar entre 139 países. Estamos atrás da Malásia, Chile, Tunísia e Panamá. O índice mede as condições de competitividade em doze dimensões. Estamos muito mal, especialmente em educação primária (106º lugar). A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (Pnad), realizada pelo IBGE, também não conforta. Temos hoje 28,2 milhões de brasileiros com idade superior a 25 anos que tiveram menos de três anos de instrução formal. Das pessoas com mais de 25 anos, 12% são analfabetas, proporção que atinge 24% na região Nordeste. A taxa de analfabetismo funcional alcança 21,7% para pessoas com mais de 15 anos.
De acordo com o Banco Mundial, nossa taxa de analfabetismo é maior que na Colômbia ou mesmo na Bolívia , países que não adotamos usualmente como referência. A Pnad também indica que temos ainda mais de 9 milhões de domicílios sem acesso à rede de abastecimento de água (cerca de 30 milhões de brasileiros) e quase 28 milhões de domicílios sem acesso à rede de esgoto (90 milhões de pessoas).
O exame Pisa, aplicado anualmente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em alunos de 15 anos em 57 países afere conhecimentos gerais de ciências, matemática e linguagem. Em 2009 ficamos em 40º em linguagem, 52º em ciências e 54º em matemática.
Muito foi feito. Há muito por fazer. No cenário econômico há ainda questões pendentes essenciais. Juros internacionais perto de zero, pletora de capitais e recuperação dos preços das commodities são condições favoráveis que devem persistir por algum tempo. Ainda assim, a mirrada taxa de investimento deixa-nos refém da necessidade de contenção da demanda. Também a esquizofrenia entre política monetária contracionista e política fiscal expansionista está a exigir uma solução. Não é possível acelerar indefinidamente o carro com o freio de mão puxado. Corte de despesas públicas seria muito salutar, mas é de difícil execução e pode ser politicamente inviável.
Por fim, a valorização cambial expõe as vulnerabilidades da indústria e estimula um déficit em transações corrente "nunca visto antes neste país". Tudo isso sugere que continuidade pode ser pouco para garantir o êxito na condução da política econômica. O alinhamento de planetas que nos permitiu condições tão favoráveis não vai durar para sempre. Será melhor estarmos preparados para criar condições permanentes de estabilidade. Um desafio não trivial.
Luis Eduardo de Assis, economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. É diretor regional da América Latina do grupo HSBC.