Título: Mudança na lei não inibiu doações ocultas
Autor: Agostine , Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 08/11/2010, Política, p. A11
A doação oculta foi determinante para o financiamento das campanhas dos 18 governadores eleitos no 1ºo turno. Nas prestações de contas entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os diretórios dos partidos aparecem como grandes financiadores de seus candidatos. Na prática, o repasse de recursos aos partidos serve para que empresas contribuam com candidatos sem se expor.
No início do ano, o TSE aprovou resolução para coibir doações ocultas e determinou que os partidos pudessem distribuir recursos recebidos de pessoas físicas e jurídicas desde que discriminassem a origem e o destino do dinheiro, mas, na prática, não é possível rastrear o doador dos recursos que vêm pelos diretórios estaduais. A análise da prestação de contas dos 18 governadores eleitos no 1º turno indica o peso da doação oculta nas eleições. De tudo o que foi arrecadado pelo caixa dos candidatos, 20% foram repassados pelos partidos. Da arrecadação dos comitês financeiros, 30% corresponde a repasses partidários, sem identificação dos doadores.
A campanha do governador reeleito do Ceará é um exemplo. Cid Gomes (PSB) declarou na prestação de contas de candidato R$ 28,9 milhões, cuja origem é o comitê financeiro, sem detalhamento de doadores. Na consulta à receita do comitê, aparecem R$ 32,6 milhões, dos quais R$ 12 milhões (36,7%) foram repassados via partido.
Os candidatos podem receber recursos por meio de conta individual e pela conta do comitê financeiro de campanha. Os dois fundos podem transferir recursos entre si, como no caso do Ceará. A arrecadação não corresponde, necessariamente, à soma das contribuições à conta do candidato e do comitê. Há uma terceira conta ainda, a dos partidos. Os diretórios tiveram de abrir uma conta específica para a eleição. Segundo o TSE, seria para evitar que os recursos do Fundo Partidário se misturassem com os da campanha e para antecipar o prazo de prestação de contas, já que os partidos só devem entregar o balanço financeiro à Justiça em março. Os partidos acabaram prestando contas junto com os candidatos e os comitês financeiros.
A prática de doação oculta é adotada por todos os grandes partidos, em maior ou menor escala. No Acre, 70% dos R$ 71 mil que Tião Viana (PT) declarou como receita de sua campanha veio do partido. Da arrecadação de R$ 4,2 milhões do comitê financeiro do candidato petista, R$ 1 milhão é de doação partidária. No Mato Grosso do Sul, 25% da receita da campanha de André Puccinelli (PMDB) foram repassados por diretórios da sigla. Em São Paulo, a campanha do governador eleito Geraldo Alckmin (PSDB) também registra doações do partido. Dos R$ 34,2 milhões declarados na conta do candidato, é possível identificar a origem de apenas R$ 1 milhão, doado pelo Banco Itaú. O restante foi repassado pelo comitê financeiro. Do total de R$ 40,7 milhões, um quarto das doações (R$ 10,6 milhões) é de repasses de diretórios estaduais e nacional e não são detalhados os doadores.
A declaração de receitas obtidas pelo governador reeleito em Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), mostra que dos R$ 13,8 milhões arrecadados, R$ 9 milhões vieram de diretórios do PSB. No detalhamento dos valores recebidos pelo comitê financeiro único, a única doação, de R$ 10 mil, também é feita pelo diretório estadual. O caso se repete em Tocantins. Dos R$ 6,3 milhões recebidos pela candidatura de Siqueira Campos (PSDB), R$ 6,1 milhões vêm do comitê financeiro único. O mesmo se dá em Santa Catarina, onde R$ 3,6 milhões dos R$ 3,9 milhões captados pela campanha de Raimundo Colombo (DEM) são do comitê financeiro único.
Os diretórios estaduais e comitês financeiros recebem não só recursos repassados diretamente por empresas, mas também de candidatos. A prestação de contas do governador reeleito na Bahia, Jaques Wagner (PT), mostra que a campanha do petista doou R$ 2,46 milhões para o PDT, PP, PCdoB - partidos de sua coligação -, por meio de diretórios partidários e comitês. Os recursos estão identificados com o CNPJ da campanha de Wagner, que arrecadou R$ 26 milhões, segundo o TSE.
Há casos em que a identificação fica ainda mais complicada, quando o comitê financeiro da campanha é único e compartilhado entre diferentes candidatos. Um exemplo é o da governadora reeleita no Maranhão, Roseana Sarney (PMDB). A maior parte dos R$ 24,4 milhões recebidos para a campanha está declarada como recursos repassados pelo comitê financeiro, mas a campanha ao governo optou pelo comitê financeiro único estadual, que é compartilhado por outros candidatos. Isso dificulta o cruzamento de informações entre os recursos recebidos por cada candidato da chapa.
O TSE ressalta que a prática de campanha de todos os casos citados é legal. Partidos e candidaturas reforçaram que as prestações de contas foram entregues dentro do prazo e que seguem à risca o que está determinado na Lei Eleitoral.
Para a Justiça Eleitoral, há um avanço em relação a eleições passadas: antes, os diretórios nacionais dos partidos recebiam os recursos de empresas e repassavam aos candidatos e diretórios regionais sem ter de prestar conta. Agora, os doadores têm de ser identificados pelo comando nacional das legendas.
O problema, no entanto, é quando os recursos chegam aos diretórios estaduais dos partidos. É como se o montante doado por diferentes empresas compusesse um fundo, que é distribuído entre os candidatos sem definir quem foi o doador. "Para cada candidato não tem como mapear", explica a assessoria do TSE. A Justiça Eleitoral informa que tem convênio com a Receita Federal para cruzar as informações e tentar mapear o caminho das doações.
O presidente da Associação Brasileira dos Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais, Márlon Reis, critica brechas da lei, modificada no ano passado em uma minirreforma aprovada pelo Congresso. "É impossível correlacionar o doador e o candidato nos repasses via partido. Foi um golpe que deram na lei", diz.
A exemplo da lei da Ficha Limpa, magistrados e organizações civis articulam-se para apresentar projeto de iniciativa popular para alterar o financiamento das campanhas . Segundo Marlon Reis, que também participou da Ficha Limpa, a ideia é coibir as doações sem identificação. Reis defende duas propostas: o financiamento público ou, no caso do privado, a proibição da doação de empresas. "Há influência muito grande das empresas. Tem de ter limite para isso", diz. Outra proposta é a lista fechada definida pelos partidos. "Hoje o TSE não consegue fiscalizar todas as contas. São milhares. Tem de ter uma conta única, para todos e só com lista fechada isso é possível", defende. A proposta deve ser debatida no dia 16, em encontro de magistrados. Eles pretendem entregar prévia do projeto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Nas últimas duas eleições, as doações ocultas movimentaram R$ 320 milhões no país. Em 2008, somaram 8,9% das receitas registradas pelos partidos. Em 2006, os candidatos receberam R$ 68,4 milhões por meio dos partidos, 4,8% do total arrecadado e declarado naquele ano.