Título: Mudou o mundo, o Brasil ou o BC?
Autor: Loyola , Gustavo
Fonte: Valor Econômico, 01/11/2010, Opiniao, p. A25

As últimas decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) parecem indicar que o Banco Central (BC) teria se tornado mais "dovish" quando comparado a sua atuação anterior na gestão Henrique Meirelles. A mesma percepção permeia os documentos escritos da instituição, assim como as manifestações verbais de seus principais dirigentes ao longo de 2010.

Diante disso, cabe indagar quais as razões teriam levado o BC a alterar suas ações e seu discurso na execução da política monetária. Teria a economia brasileira mudado estruturalmente, abrindo espaço para uma taxa de juros "neutra" mais baixa? Seria a conjuntura internacional, onde sobressaem os riscos deflacionários, a responsável pela atual postura do BC? Ou seria essa mudança apenas uma consequência da alteração na composição da diretoria da autoridade monetária?

Obviamente, não é simples a resposta a essas questões, até porque a execução da política monetária pode estar sendo influenciada simultaneamente por uma multiplicidade de fatores. Não obstante, parece ser interessante examinar os meandros do processo que, aparentemente, tem levado o BC a se mostrar menos avesso ao risco inflacionário do que no passado recente.

Inicialmente, abordemos a questão da taxa de juros "neutra". Como salientado na literatura econômica, trata-se de um conceito de difícil mensuração prática. Em linhas gerais, define-se "taxa de juros real neutra" como sendo o nível da taxa básica de juros que assegura o crescimento não inflacionário da economia, presentes certas condições estruturais. Há razoável consenso, e dele fazemos parte, que nos últimos anos os avanços institucionais, a consolidação do regime de metas para inflação e da credibilidade do BC, a redução do prêmio de risco soberano e o desenvolvimento do mercado de crédito, entre outros fatores, conduziram à queda da mencionada taxa de juros "neutra" no Brasil.

Aumentou a probabilidade de o BC ser surpreendido pela trajetória de inflação em 2011

Porém, há o problema prático de se conhecer exatamente qual é o nível de taxa real de juros que estaria adequado com o atual estágio dos fundamentos da economia brasileira. Num exercício econométrico realizado pela Tendências Consultoria, encontramos um nível em torno de 7% ao ano que, considerada uma meta de inflação de 4,5%, significaria uma taxa nominal básica ao redor dos 11,5% ao ano. O próprio BC realizou uma pesquisa entre os agentes de mercado para coletar suas estimativas da taxa de juros "neutra". Seu resultado não se desvia muito do número estimado pela Tendências. A média das estimativas do mercado ficou em 6,55% ao ano, com uma mediana de 6,75% ao ano, apresentando a distribuição de expectativas duas modas: 6,5% e 7% ao ano.

Ora, a taxa Selic está no momento em 10,75% ao ano, o que subtraída a meta de inflação de 4,5%, (pressupondo que as expectativas tenham convergido para a meta) resulta em taxa real de juros de 6,25% ao ano, percentual abaixo da média da pesquisa do BC. E se considerarmos a expectativa de inflação para os próximos 12 meses, o número é ainda menor, de 5,6% ao ano. Desse modo, parece razoável inferir que o BC está apostando que a taxa "neutra" é, de fato, abaixo do que acredita maioria dos agentes de mercado pesquisados.

Porém, outra explicação possível é considerar que a autoridade monetária entende que a conjuntura desinflacionária internacional (pelo menos nos países desenvolvidos), aliada ao movimento de depreciação do dólar americano, estaria se consubstanciando num cenário inflacionário doméstico mais benigno. Nesse sentido, aliás, na ata da última reunião do Copom, o BC afirma que "permanece elevada a probabilidade de que se observe alguma influência desinflacionária do ambiente externo sobre a inflação doméstica".

O problema com essa assertiva é que, não obstante a anemia econômica dos países desenvolvidos, não há de fato um ambiente desinflacionário quando se trata dos preços das "commodities", cuja trajetória é volátil e num sentido inverso ao comportamento do dólar dos EUA. O próprio BC, na referida ata do Copom, reconhece tal volatilidade, o que recomendaria, a meu ver, maior cautela na política monetária. Ademais, no contexto de crescente intervenção no mercado cambial, inclusive com o uso de medidas heterodoxas, não se pode mais contar como certa a apreciação do real para amortecer as pressões externas dos preços das "commodities" sobre a inflação doméstica.

Em vista das questões aqui discutidas, a postura mais "dovish" do BC poderia ser também consequência da mudança da composição do Copom, cujos integrantes atuais seriam menos avessos ao risco inflacionário do que seus antecessores e, por isso, mais dispostos a correrem o risco da manutenção dos juros no limiar inferior do que poderia ser considerada a taxa "neutra". Não estamos, obviamente, afirmando que o BC tenha deixado de praticar uma política monetária responsável, nem que haja riscos de descontrole inflacionário no futuro. Porém, como refletido nas expectativas inflacionárias coletadas na pesquisa "Focus", aumentou a probabilidade de o BC ser surpreendido pela trajetória de inflação em 2011, hipótese que demandaria um ajuste maior da taxa básica de juros.

Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV. Ex-presidente do BC, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.