Título: Não se deve retroceder na autonomia do BC
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/11/2010, Opinião, p. A10

Em pronunciamento feito na reunião do diretório nacional do PT, na última sexta-feira, a presidente eleita Dilma Rousseff manifestou satisfação por ter recebido o que denominou de "herança bendita" do governo Lula, em oposição à chamada "herança maldita" que os petistas afirmam que Lula recebeu do governo de Fernando Henrique Cardoso. Sem entrar no mérito das definições das referidas heranças, mais relacionadas à agenda eleitoral, cabe tentar identificar as características da situação a que Dilma está qualificando de "bendita".

Uma inflação sob controle e uma economia em crescimento acelerado, criando mais de 2 milhões de novos empregos este ano, são, sem dúvida, as características mais visíveis da situação confortável que a presidente eleita vai herdar. Junte-se a isso o aumento continuado da renda da população e a redução expressiva do número de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza.

Mas a realidade presente do Brasil, que é sem dúvida excepcional, não carrega consigo as marcas das dificuldades que foi necessário superar ao longo das últimas décadas. Nem as marcas das agruras enfrentadas pela população brasileira, principalmente dos mais pobres, até o país chegar à estabilidade econômica e financeira que, para todos, está significando melhoria nas condições de vida.

A estabilidade econômica no Brasil foi conquistada a duras penas, como ainda está na memória dos mais velhos. O país conviveu durante décadas com taxa de inflação elevadíssima, que penalizou tristemente a população de baixa renda. Chegou-se a registrar uma inflação mensal superior a 80% no fim do governo de José Sarney. Os sucessivos governos tentaram acabar com a hiperinflação, com a adoção de planos econômicos mirabolantes que resultaram em custos incalculáveis para os cidadãos, que até hoje tentam reparar suas perdas nos tribunais.

Com o plano Real chegou-se, finalmente, à estabilização. A própria estabilização não foi uma conquista instantânea e definitiva, mas um difícil processo que durou anos, entremeados por crises internacionais. Apenas quando o governo brasileiro adotou a política de metas de inflação, o câmbio flutuante e uma política fiscal responsável, com a obtenção de superávit primário das contas públicas suficiente para reduzir a dívida como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), a estabilização brasileira consolidou-se.

Esse tripé econômico já tem mais de 10 anos e a ele pode ser atribuída, em grande parte, a "herança bendita" a que a presidente eleita Dilma se referiu. Não há dúvida de que a manutenção do tripé econômico pelo presidente Lula foi uma de suas mais importantes decisões ao longo dos seus dois mandatos.

Desde que perdeu a eleição de 1994 para Fernando Henrique Cardoso, beneficiado pelo apoio da população ao Plano Real, Lula entendeu que o povo pobre não gosta de inflação, pois é o maior perdedor desse jogo. Quando assumiu o seu primeiro mandato, Lula aceitou dar autonomia operacional ao Banco Central (BC), condição imposta por Henrique Meirelles para ocupar a presidência da instituição.

Lula chegou a encaminhar um projeto de lei ao Congresso Nacional propondo essa autonomia. O projeto foi esquecido em alguma gaveta da Câmara, mas o presidente da República manteve a sua palavra e Meirelles teve apoio para executar uma política monetária autônoma que, algumas vezes, contrariou o próprio Lula.

Não é necessário lembrar aqui os inúmeros embates que Meirelles e os demais diretores do Banco Central tiveram com setores do governo, do PT e dos partidos aliados para executar uma política monetária adequada. Os jornais dos últimos anos estão repletos de notícias sobre esses conflitos. Mesmo diante desses embates, Lula manteve o apoio a Meirelles e à diretoria do Banco Central. E colheu os frutos "benditos".

Todos aqueles que acompanharam a história recente da economia brasileira sabem que a autonomia operacional do Banco Central, concedida espontaneamente por Lula, pois nada na legislação obrigava o presidente a isso, é um avanço fundamental. Retroceder nessa questão poderá levar o país de volta à inflação, com consequências desastrosas para a sociedade, principalmente os mais pobres.