Título: UE quer agora negociar clima com os emergentes
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 05/11/2010, Especial, p. A16

De Bruxelas

Os europeus chegarão à conferência do clima em Cancún, no México, no final deste mês, de olho nas nações emergentes. Sem ilusões quanto aos Estados Unidos, políticos europeus têm repetido que a chave da questão climática está na China, a economia mais vigorosa do mundo e que, mesmo muito dependente do carvão, é a que mais tem investido em energias renováveis. O Brasil, por seu turno, vem sendo citado como o curinga nas negociações, capaz de fazer a ponte entre emergentes, o mundo em desenvolvimento e os países industrializados.

"Não falo pelo meu grupo, mas é a minha opinião pessoal: precisamos olhar mais para o Brasil", disse o alemão Peter Liese, membro do Parlamento Europeu, durante o seminário "Climate Action Conference", na semana passada, em Bruxelas, na Bélgica. "O Brasil é um grande "player" nas negociações do clima e pode trazer a China e a Índia para esta agenda", continuou Liese, também membro do comitê europeu de Meio Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar.

O argumento de Liese é que o Brasil, além de ser uma das maiores economias do mundo e ter tido ótimo desempenho, tem sido "muito ambicioso na pauta climática". O parlamentar lembrou ainda que "na disputa presidencial uma candidata com agenda verde teve quase 20 milhões de votos" e que o índice de desmatamento da Amazônia vem caindo.

Tudo somado, Liese, que está vindo ao Brasil nos próximos dias, entende que o país alçou ao plano político o cuidado com os recursos naturais, a sustentabilidade e o clima da Terra. "O presidente Lula fez um grande discurso em Copenhague", arrematou. Essas referências dariam ao Brasil credenciais importantes na próxima edição de negociações do acordo climático depois da traumática conferência de Copenhague, no final de 2009.

Traumática, mas não totalmente fracassada, no entendimento de Connie Hedegaard, a comissária de Ação Climática da Comissão Europeia, um novo departamento criado em fevereiro. "Está certo, o acordo forte e legalmente vinculante não aconteceu em Copenhague", começou Connie, que é dinamarquesa e foi uma das figuras mais proeminentes durante a conferência. "Mas o que ocorreu no mundo nos seis meses antes da CoP-15 é notável e fez diferença." Até então, só a Europa tinha compromisso de cortar 20% de suas emissões até 2020 - podendo chegar a 30%, se outros fizerem o mesmo. Durante 2009 e na véspera da cúpula, vários países começaram a colocar suas metas: Japão, Coreia do Sul, México, África do Sul, China, Índia e Brasil, para citar alguns.

"Copenhague provocou uma grande mudança de atitude", prosseguiu Connie, ex-ministra do Clima e Energia de seu país. "Metas domésticas não são o mesmo do que um acordo internacional, mas quem diria, dois anos antes, que China e Índia concordariam em ser parte da solução?". Connie não diz, mas todos - e principalmente os emergentes - acreditavam naquele momento que os EUA pudessem entrar no jogo.

O político inglês Chris Davies, membro do Parlamento Europeu, foi contundente: "A chave da questão climática está na China, mais do que nos Estados Unidos ou na Europa". Se de um lado a China investe pesado em renováveis, por outro é o maior emissor de gases-estufa nos dias de hoje. "Mas os chineses resistem a maiores compromissos argumentando que suas emissões per capita são muito menores que as europeias ou americanas, e valendo-se também da responsabilidade histórica pelo problema", sublinhou. "Eles têm razão", reconheceu. Na sequência mencionou o futuro da África, o continente mais vulnerável à mudança climática segundo as previsões. "Não se pode escapar a esta responsabilidade mesmo se se chegou tarde ao jogo", alfinetou.

Se o discurso dos países emergentes na discussão climática internacional passa pela comparação das emissões per capita (como dizem os chineses), pelo espaço de carbono reservado na atmosfera à cada país (como gostam de defender os indianos), ou apontando para a responsabilidade histórica pelo problema (o argumento brasileiro), a resposta europeia costuma ser a de concordar. Mas a anuência não leva a lugar nenhum: em seguida, os europeus dizem que estamos todos no mesmo barco, e o barco está fazendo água.

O Brasil vem sendo citado como o curinga nas negociações, capaz de fazer a ponte entre países [ricos e pobres]

Em sua apresentação, Jos Delbeke, diretor geral da Ação Climática da Comissão Europeia, deu os números por trás da necessidade de se acertar um acordo climático internacional. Hoje o mundo tem perto de 6 bilhões de pessoas e devem ser 9 bilhões em 2050. Em 2030, segundo a IEA (a Agência Internacional de Energia), haverá um aumento na demanda energética de 40% (sendo três quartos disso combustíveis fósseis). Em 2030, estima-se que a falta de água afetará 4 bilhões de pessoas. Em 2050, segundo a ONU, 80% das pessoas viverão em cidades. E se hoje circulam no mundo 850 milhões de veículos, serão 3 bilhões em 2050.

Na sequência, Delbeke mostrou os gráficos de projeções de aumento de concentração de gases-estufa na atmosfera e de temperatura de acordo com os cenários do IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudança Climática da ONU, na sigla em inglês. E despejou a tabela do percentual de participação nas emissões globais, com os grandes nomes. A Europa responde por 14% do problema; os Estados Unidos estão empatados com a China (cada um responsável por 20% das emissões mundiais); o Japão tem 4%; a Índia, 4,5%; e o Brasil, 3,5%.

Os 15 países europeus comprometidos com o Protocolo de Kyoto quando o acordo foi desenhado prometeram cortes de 8% nas emissões de gases-estufa em relação aos níveis de 1990. De 1990 a 2008, tinham conseguido diminuir suas emissões em 6,5%, sendo que o PIB do grupo cresceu 45% no período. Considerando os países que se juntaram depois ao bloco, hoje com 27 nações, as emissões caíram 11% em 2008 com aumento de 46% no PIB. "Vamos cumprir nossos compromissos", diz Connie, referindo-se às metas do Protocolo de Kyoto. O problema é que os compromissos da primeira fase de Kyoto são tímidos demais para o tamanho do desafio. E a Europa considera estar sozinha no páreo.

O famoso economista americano Jeffrey Sachs reforçou essa ideia ao falar aos jornalistas reunidos em Bruxelas que o mundo não deve esperar pelos Estados Unidos. As eleições parlamentares americanas ainda não haviam pintado os EUA da cor republicana, mas as evidências disso eram fortes e Sachs examinava seu reflexo na negociação climática mundial. "Os EUA ficarão alérgicos à menção de qualquer acordo internacional."

Para piorar, na trajetória de Copenhague a Cancún a crise econômica se agravou no continente europeu. A recessão é o motivo alegado para que a Europa não avance em sua antiga promessa de subir de 20% para 30% o compromisso de cortes nos gases-estufa. Eles dizem que poderiam fazê-lo, desde que "outros façam o mesmo", mas que não vão se mexer porque nem EUA nem China enviam sinais positivos. Na verdade, o bloco tem problemas internos. Enquanto a Alemanha acena para prometer 40% de redução, Itália e Polônia não querem nem ouvir falar em cortes maiores aos 20% atuais.

Alguns setores no Reino Unido temem que a meta de 30% seja feita à custa de empregos. Políticos apontam para o risco de que indústrias migrem para países onde não há limite de emissões. "Há grandes argumentos para que não façamos isto agora", justifica o inglês Chris Davies, referindo-se à Europa assumir uma meta maior e liderar o processo. "Então o que temos que fazer em Cancún?", questiona. "A coisa mais importante é deixar o trem andando."

A estratégia europeia para deixar o trem andando em Cancún é bem diferente à adotada em Copenhague. Na Dinamarca, Connie repetia a expressão "Não há Plano B", e insistia que era preciso firmar lá um acordo forte, ambicioso e amplo. Agora ela fala em uma tática "passo a passo". "Em Copenhague, a pressão da sociedade junto aos líderes estava no nível máximo. Conseguimos trazer o tema para o topo da agenda política internacional", diz. "Agora, em Cancún, a coisa tem que andar. Ou as pessoas perderão a paciência com o processo." E o que acontece se a ameaça virar realidade e o vagaroso e polêmico sistema das Nações Unidas ficar esvaziado? "Qual é a alternativa?" questionou Connie. "O G-2 não é porque China e EUA tiveram várias bilaterais e não resolveram. O G-8 não faz sentido. O G-20... É fácil dizer que vamos discutir este assunto em outro fórum e resolver tudo, mas não funciona assim."

Em Cancún, prosseguiu Connie, "vamos ser bem práticos". "Ninguém espera hoje que se chegue no México a um acordo forte", emendou. O que se espera fechar ali é um "pacote" de decisões em discussões avançadas nas rodadas internacionais. Uma delas seria sobre florestas - mais especificamente, um acordo de Redd (redução de emissões de desmatamento e degradação). O outro é sobre adaptação, e o terceiro tópico sobre tecnologia. "O que não podemos é recuar e reabrir a discussão sobre o Acordo de Copenhague", frisou. O chamado fast track money, dinheiro prometido para siar rapidamente a países mais necessitados não tem nada de rápido - a parcela correspondente a este ano será entregue, prometeu, ignorando o fato de faltarem dois meses para 2010 terminar.

Os europeus sonham com um mercado global de emissões e incluem as economias emergentes nestas projeções. A estratégia é fortalecer seu próprio mercado de licenças de emissão, o maior do mundo com 30 países participando. A Coreia está entusiasmada com isto, mas a Austrália quer desistir da ideia. Sem um emergente entrando e sem os EUA, o mercado dificilmente ficará "global".

O mercado europeu de licenças de emissão funciona a partir do sistema de "cap and trade", sendo o "cap" o limite máximo de emissões e o "trade", o comércio de licenças. Em 2012, a aviação e o alumínio também irão entrar no sistema e talvez o transporte marítimo. Aviação e transporte marítimo são setores de grande emissão que ficaram fora de Kyoto.

O mercado europeu também começará a incluir outros gases-estufa como óxido nitroso (N2O), produzido no uso de fertilizantes na agricultura e os perfluorcarbonetos (PFCs), subproduto da fundição de alumínio e do enriquecimento de urânio que vem sendo utilizado na fabricação de semicondutores. Ambos são gases-estufa e foram regulados por Kyoto. Embora existam em concentrações muitos inferiores ao CO2, seus efeitos são muito mais nocivos.