Título: Reciclagem deve crescer com o fim dos lixões
Autor: Adeodato , Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 19/11/2010, Especial, p. F6

O Lixão da Estrutural, em Brasília, recebe praticamente tudo que é descartado pela população nas residências - cerca de 2 mil toneladas diárias de resíduos, inclusive recicláveis. Na entrada do aterro, caminhões de sucateiros fazem fila para recolher o material vendido pelos catadores. No total, 1,6 mil atuam na área e, com sorte, podem ganhar até R$ 3 mil mensais. Alguns chegam de carro próprio ao trabalho. Em condições insalubres, garimpam montanhas de papéis, garrafas, metais, entulho e plástico - inclusive bandeiras que restaram das campanhas eleitorais. A maioria habita o bairro do entorno, que cresceu na base de invasões e hoje reúne 42 mil habitantes, movimentando R$ 8 milhões mensais a partir do lixo. Violência, prostituição e drogas são rotina de uma realidade que - pelo menos no papel - está com os dias contados.

De acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, sancionada em agosto, as cidades são obrigadas a banir os lixões até 2014. Em seu lugar, deverão ser construídos aterros sanitários com controle ambiental, fechados à catação, para onde serão levados apenas rejeitos - ou seja, os resíduos que não podem ser reciclados.

Apesar de vitrine como capital do país, Brasília não tem uma área nesses padrões. Mas integra um conjunto de cidades brasileiras que buscam um novo formato para gestão do lixo, sustentado por sistemas mais eficientes de coleta seletiva nas residências. "Sem a estratégia, a nova lei de resíduos jamais será cumprida na prática", adverte Victor Bicca, presidente do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre).

A instituição reúne mais de 30 empresas de grande porte e apoia as mudanças na capital brasileira ao lado do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Coca-Cola e organização holandesa ICCO.

"Com o fim dos lixões, os materiais antes despejados a céu aberto precisarão de um novo destino, sendo a reciclagem o principal deles", justifica Bicca.

A expectativa é de que os investimentos para a Copa do Mundo de 2014, ao seguir padrões ambientais, incluam a infraestrutura para a coleta seletiva.

O diferencial do modelo de gestão atualmente em teste está na inserção de cooperativas de catadores como prestadoras de serviço de limpeza urbana, remuneradas pelo poder público para realizar tarefas - desde a separação dos materiais em centros de triagem até a própria coleta nas moradias, desviando para a reciclagem o lixo dos aterros. "Essa força de trabalho é o caminho mais barato e acessível para tirar embalagens das ruas, mas é urgente buscar inovação para viabilizar esse processo", opina Bicca.

No caso de Brasília, como uma capital planejada, há boas condições urbanísticas para a coleta seletiva. O serviço chegou a operar entre 1996 e 1998 no Plano Piloto, com forte adesão popular, mas não teve continuidade.

"A barreira atual está na terceirização da limpeza urbana, que absorve recursos significativos de custeio (R$ 380 milhões por ano), sem estrutura para fiscalização", afirma Jorge Arthur de Oliveira, da Ecooideia (Cooperativa de Serviços e Ideias Ambientais). A cooperativa foi contratada pela Fundação Banco do Brasil para orientar a organização dos catadores, hoje responsáveis pelo aproveitamento de 7 mil toneladas antes destinadas ao lixão.

A proposta é implantar a coleta seletiva operada por empresas para recolhimento do lixo seco e úmido, em dias alternados, com redução de custo. O material deverá ser encaminhado para usinas de compostagem e centrais de triagem das cooperativas, pagas pelo poder público para receber o resíduo. Além desses valores previstos em contrato, calculados com base na produtividade, os catadores lucram com a venda no mercado de sucata. Criam-se dessa maneira condições para que o Lixão da Estrutural, o único local onde são enterrados os resíduos de Brasília, seja transformado em aterro dentro de critérios ambientais, podendo inclusive gerar receita com a conversão do gás metano em energia.

"Nos últimos anos, a reciclagem cresceu, ganhou complexidade e modernidade, e o maior desafio é inserir os catadores nesse mercado que se desenvolveu", explica Ismael Gilio, responsável pelo Fundo Multilateral de Investimento, do BID, em Brasília.

"O objetivo é alcançar escala", diz Gilio, lembrando os indicativos de que a reciclagem ganhará novo patamar, impulsionada pela Lei de Resíduos Sólidos. Ele cita como exemplo a existência de linhas de crédito oficiais, expectativa de incentivos fiscais e maiores investimentos públicos e privados.

Modelos de menor custo e maior eficiência estarão em vantagem para receber investimentos. O plano do BID é testar experiências e replicar na América Latina.

Com recursos de US$ 8 milhões, além da capital federal, outras quatro cidades participam do projeto. Belém adota a qualificação das cooperativas, remuneradas como agentes da coleta seletiva.

Em Aracaju, onde será construído um novo aterro sanitário, optou-se por constituir uma nova empresa de limpeza urbana com participação acionária dos catadores. Já em Salvador, a estratégia é estruturar uma rede de cooperativas para venda em grupo dos materiais recicláveis, com melhor margem para negociação de preços. Também está previsto investimento na pré-industrialização de produtos reciclados pelas cooperativas, agregando valor ao material separado do lixo.

Igual caminho segue o município de Abreu e Lima (PE), próximo a Recife, onde os catadores têm apoio para montar um minipolo industrial de reciclagem.

Em outra iniciativa, o BID se associou ao Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam) para desenvolver microparcerias público-privadas no sentido de viabilizar a coleta seletiva, de acordo com as realidades locais. "As prefeituras precisam estabelecer relação formal com as cooperativas, mediante contratos de longo prazo, caso contrário a coleta poderá fracassar", afirma Gilio.

É o caso de Manaus, maior geradora de lixo na Amazônia, que começa a definir uma fórmula para remunerar os catadores, com base em indicadores como produção mínima, viabilidade econômica e demanda do mercado local. A meta é desenvolver experiências do gênero em 12 cidades.

"O importante é evitar o assistencialismo", ressalta Valéria Rusticci, da Agência Reguladora de Serviços, da prefeitura de Itu (SP). A coleta seletiva na cidade, existente há dez anos, cobre hoje 100% da área urbana e 20% da rural, ao custo de R$ 25 mil mensais. Os resíduos são levados para uma cooperativa, também objeto de estudos para se chegar a uma metodologia de remuneração pelo serviço. Atualmente, os 82 cooperados têm ganho mensal próximo a R$ 900 e condições para acesso a programas habitacionais. "Lidar com resíduos é trampolim para ascensão social", afirma Ruticci.

Contratar cooperativas sem licitação pública, como permite a Lei Nacional de Saneamento Básico, é realidade em Araxá (MG). Elas recebem R$ 85,34 por tonelada de sucata. "Parte do que se gastava para enterrar os resíduos está sendo revertido para pagar os catadores", enfatiza José Aparecido Gonçalves, coordenador do Centro Mineiro de Resíduos (CMR), que mobiliza dez municípios para uma nova gestão do lixo, com objetivo de multiplicar o modelo no Estado.