Título: Ressarcindo prejudicados no combate aos cartéis
Autor: Carrasco ,Vinicios ; Mello , João M. Pinho de
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2010, Opiniao, p. A16

Em setembro deste ano, o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade) condenou quatro empresas do setor de gases medicinais e industriais por prática de cartel. As multas aplicadas às infratoras foram recordes na história do Direito Antitruste no Brasil: R$ 2,3 bilhões. Duas perguntas se impõem. Em primeiro lugar, quais os prejuízos acarretados por um cartel? Ademais, seria a multa administrativa capaz de dissuadir empresas de formar cartéis ou reparar os danos causados?

Um cartel é um acordo entre firmas de um mesmo mercado. Seu objetivo é, por meio de fixação de preços, quantidades e/ou divisão de mercado, suprimir a competição entre seus participantes e, com isso, aumentar seus lucros.

É fácil ver que um cartel prejudica os consumidores. Menos óbvio é o fato de que, em geral, a cartelização reduz o bem-estar agregado. Em outras palavras, o ganho obtido pelas firmas cartelizadas é menor que o prejuízo causado aos consumidores, o que gera ineficiências econômicas. Portanto, qualquer arcabouço legal que atribua pesos iguais a consumidores e produtores deve proibir a formação de cartéis. Não é de se espantar, portanto, que cartelização seja crime em virtualmente todos os países do mundo.

A ineficiência de um cartel se manifesta nas quantidades comercializadas, menores do que as que prevaleceriam caso houvesse competição. De fato, com a cartelização as firmas conseguem cobrar preços maiores dos consumidores, o que reduz a quantidade transacionada. No caso dos gases medicinais, isso significou menos oxigênio para tratamentos hospitalares, causando, nas palavras do conselheiro relator no Cade, uma redução da capacidade de atendimento dos hospitais. No caso de outro cartel condenado pelo conselho, o dos vergalhões de aço para construção civil (aços longos), o aumento de preço do vergalhão, insumo indispensável para a construção civil, causou, indiretamente, uma redução nas moradias construídas e disponíveis.

Dado o prejuízo social que os cartéis geram, é preciso ter em mãos mecanismos para coibir sua formação. Um instrumento é penal: formação de cartel é crime com pena de reclusão prevista no código penal. No entanto, em terras pátrias ainda não é claro que a pena de reclusão - apesar de prevista na legislação -, seja uma ameaça suficientemente crível para delinquentes de colarinho branco como os formadores de cartel. As multas administrativas - como as aplicadas com competência pelo Cade -, também ajudam. Mas como sugere o cartel dos gases, tais punições não eliminam o incentivo para cartelizar. Afinal, outros cartéis já haviam sido condenados e multados antes da formação do cartel dos gases.

Nesse contexto de dissuasão imperfeita, outro instrumento ganha importância: a compensação das partes prejudicadas pelos danos causados pelo cartel, ou seja, os consumidores ou adquirentes que pagaram além do devido por causa da prática de conluio, o chamado sobrepreço do cartel. Ou seja, o dano é a quantidade transacionada multiplicada pelo sobrepreço, que é a diferença entre o preço que prevaleceu durante o período de cartelização - determinado pelo Cade em sua decisão de condenação - e o preço que prevaleceria na ausência do cartel.

Determinar o preço na ausência do cartel é um exercício contrafactual. Qual seria o preço de equilíbrio se as firmas tivessem concorrido de forma legítima? Apesar da aparente dificuldade do exercício, a tradição americana e europeia já se mostrou bastante bem sucedida em encontrar esse preço contrafactual. Vários métodos podem ser aplicados. Um deles é o chamado antes-e-depois, que consiste em comparar os preços no período de cartelização (determinado judicialmente) com os preços no período para onde não há razão a priori para acreditar que havia cartel. Claro, sempre controlando para outros fatores, tais como custos, que afetam os preços nos período de cartel e de concorrência.

Nos EUA, há uma longa tradição de ressarcir os danos/prejuízos advindos do sobrepreço dos cartéis condenados. O padrão americano é que o ressarcimento seja o triplo do dano ("treble damage").

O ressarcimento cumpre dois papéis essenciais. O primeiro é o de justiça redistributiva: as partes prejudicadas recuperam os danos causados por um cartel. Não menos importante, o segundo papel é dissuasório ("deterrence" ou prevenção geral). Deparadas com uma probabilidade de ter de ressarcir um valor não menor do que os benefícios que extraem do cartel, as firmas terão menos incentivos ao conluio. Por exemplo, a lógica do ressarcimento triplo é dissuasória. Se o cartel indenizasse os prejudicados somente pelo dano causado pela imposição de sobrepreço, é provável que, pela perspectiva financeira das empresas, fosse sempre vantajoso cartelizar porque não é líquido e certo que haverá detecção e punição. Portanto, ao diminuir os incentivos à cartelização, o efeito de dissuasão pela reparação aumenta a eficiência econômica e, consequentemente, o bem-estar social

Os tribunais brasileiros vêm se deparando, após a condenação pelo Cade do cartel dos vergalhões em 2006, com as primeiras ações ressarcitórias movidas por prejudicados contra a formação de cartel. Recentemente, a Associação dos Hospitais de Minas Gerais capitaneou ação coletiva ressarcitória contra o cartel dos gases. O principal objetivo do sistema de responsabilidade civil é a reparação pelos danos acarretados pela cobrança de sobrepreços. Portanto, não é possível com a atual legislação - ainda que desejável sob a ótica de eficiência econômica -, triplicar o valor dos prejuízos de forma a dissuadir infratores.

Ainda assim, ao aplicarem a Lei Antitruste os magistrados devem ter em mente que, ao prover reparação do prejuízo e determinar a cessação da cobrança de sobrepreços, além de fazer justiça in casu também contribuirão para resguardar a ordem econômica e o bem-estar social.

Vinicius Carrasco e João Manoel Pinho de Mello são PhDs em economia pela Stanford University e professores do departamento de Economia da PUC-Rio. Foram peritos econômicos em casos de ressarcimento por danos causados por cartéis.