Título: A armadilha do dinheiro quente
Autor: Steinbock , Dan
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2010, Opiniao, p. A17

A recente crise financeira viu a Ásia emergir ao patamar de potência econômica - em verdade, à posição de principal motor do crescimento mundial. Dentro de uns cinco anos, a economia total da Ásia poderá ser tão grande quanto a dos EUA e da União Europeia reunidas.

De fato, enquanto a Ásia está em ascensão, os países ricos e industrializados do antigo G-7 estão à deriva, numa armadilha de liquidez. À medida que a recessão em curso esgota os instrumentos tradicionais de política monetária, os bancos centrais estão optando por novas rodadas de flexibilização quantitativa (QE, sigla em inglês). E, estando os investidores em busca de maiores retornos, mais QE - especialmente nos EUA - levará o "hot money" (fluxos de capital especulativo em carteiras de curto prazo) às economias de elevado rendimento nos mercados emergentes, o que poderá inflar bolhas perigosas na Ásia, América Latina e em outros países.

O Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) e o governo Obama continuam retoricamente aderindo à manutenção de um "dólar forte". Mas é a desvalorização do dólar que vem impulsionando o lucro das empresas americanas desde o estouro da crise.

Desde o final de agosto, quando presidente do Fed, Ben Bernanke, defendeu uma nova rodada de QE, o dólar despencou mais de 7% contra uma cesta de meia dúzia de moedas importantes. Aplicações financeiras indexadas à inflação estão sendo agora oferecidas pela primeira vez a rendimentos negativos.

Após as eleições em meio de mandato presidencial e a ressurgência dos republicanos no Congresso dos EUA, a decisão do Fed de bombear US$ 600 bilhões na economia até meados de 2011 provavelmente desencadeará ações similares no Reino Unido, Japão e outras economias avançadas. Além disso, o Fed deixou a porta aberta para mais flexibilização quantitativa no próximo ano - num reconhecimento tácito de que a recuperação será longa e lenta. Mas a implicação de uma nova rodada de QE para os juros poderá ser reduzida e limitada ao efeito do anúncio, é o que indica a própria pesquisa do Fed.

Na realidade, o impacto do QE2 americano não será doméstico, porque o efeito líquido será um dólar mais fraco, à medida que os especuladores apostarem em seu declínio. As sucessivas ondas de QE equivaleriam a rebaixar o valor do dólar e, assim, desvalorizar as enormes dívidas americanas.

Enquanto isso, os países em desenvolvimento estão caminhando na direção oposta. Em outubro, o Banco Popular da China, em resposta às ameaças gêmeas de inflação e bolhas de ativos, elevou em 25 pontos base os juros sobre depósitos por um ano e a remuneração sobre empréstimos, para 2,5% e 5,56%, respectivamente - o primeiro aumento desde 2007.

No Ocidente, as preocupações com o impacto sobre o crescimento chinês desencadearam uma terrível onda de vendas nos mercados. Imediatamente antes de o Fed agir, o Banco Central da Índia elevou sua taxa básica de juros de curto prazo em 25 pontos base, para 6,25%, para combater a inflação, e o banco central da China agora sinaliza que poderá elevar os juros.

No Brasil, as taxas de juros permanecem perto de 11%. Após a decisão do Fed, o Brasil está se preparando para retaliar. "Não adianta lançar dólares de um helicóptero", nas palavras do ministro da Fazenda, Guido Mantega. Logo depois, o ministro alemão das Finanças qualificou a política americana de "desnorteada" enquanto seu colega sul-africano afirmava que a decisão do Fed minou o "espírito de cooperação multilateral" do G-20.

Hoje, um aprofundamento da divisão mundial coloca os EUA, em lento crescimento, contra muitas economias de mercados emergentes e países produtores de commodities. O impacto mundial do QE só tem agravado a cisão, refletida nos atritos entre nações do G-20.

Existe também o risco de um declínio desestabilizador do dólar, o que poderia levar os investidores a fugir de dívida americana. Em seu famoso discurso de 2002 sobre a possibilidade de deflação nos EUA, Bernanke sugeriu que a desvalorização de 40% do dólar em 1933-1934, durante o governo de Franklin Delano Roosevelt, mostra que a política cambial pode ser uma "arma eficaz contra a deflação".

Como Chen Deming, ministro do Comércio da China, reclamou, "a emissão de dólares pelos EUA está fora de controle e os preços internacionais das commodities continuam subindo". Em consequência, a "China está sendo atacada por uma inflação importada."

O impacto da política do Fed e dos fluxos de capital especulativos tem sido dramático. No terceiro trimestre deste ano, houve um crescimento de US$ 194 bilhões nas reservas chinesas em moeda estrangeira, superando em muito o superávit comercial do país, de US$ 66 bilhões, e as entradas de US$ 23 bilhões de investimento direto estrangeiro. Ao menos parte da diferença pode ser atribuída ao capital especulativo.

E ainda mais importante é o fato de que uma desvalorização desestabilizadora do dólar (ou uma apreciação perturbadora do yuan) pode prejudicar não apenas o crescimento chinês, como também a recuperação mundial. Em 1990, as economias emergentes e em desenvolvimento ainda dependiam do crescimento G-7. Na década passada, como mostra a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), esses países tornaram-se dependentes do crescimento chinês. Qualquer diminuição no crescimento da China, portanto, prejudicará significativamente a redução da pobreza no mundo emergente.

Durante a presidência de George W Bush, políticas de segurança unilaterais deixaram os EUA sem amigos. Na era Obama, políticas econômicas unilaterais poderão produzir o mesmo resultado. Numa economia globalizada, as decisões dos bancos centrais dos principais países têm implicações internacionais. E, num mundo onde o G-7 deixou de ser o motor do crescimento mundial, imprimir dinheiro é brincar com fogo.

Dan Steinbock é diretor de pesquisas de negócios internacionais no Instituto China, Índia e América, e professor visitante no Instituto de Estudos Internacionais de Xangai (China).