Título: Um outro Alfonsín se lança à Presidência da Argentina
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 02/12/2010, Especial, p. A18

Na Argentina, um ditado político assegura que o peronismo, quando não está governando, não deixa ninguém governar. O deputado Ricardo Alfonsín, de 59 anos, que lança amanhã sua pré-candidatura à Casa Rosada pela União Cívica Radical (UCR), está disposto a desafiar a sabedoria popular, embora os dois últimos ex-presidentes eleitos pelo partido não tenham chegado ao fim de seus mandatos. A 11 meses das eleições presidenciais, o maior partido de oposição ao governo de Cristina Kirchner está fraturado e seus principais expoentes não se entendem. Mas o cenário é bom para Alfonsín, um dos raros políticos argentinos que conseguem dialogar com o kirchnerismo, estando do lado oposto.

O deputado ainda vive sob a sombra do pai, o presidente Raúl Alfonsín (1983-1989), justamente um dos que não conseguiram completar o mandato - o outro foi Fernando de la Rúa, que renunciou em meio à crise econômica de 2001. Fragilizado pela hiperinflação, Alfonsín, o pai, antecipou a entrega do cargo ao sucessor, Carlos Menem.

Com o tempo, a imagem de fracasso no combate à inflação foi substituída pela figura de estadista e de condutor da redemocratização. Sua morte, que levou milhões de argentinos às ruas para o funeral, revigorou o "radicalismo" e tornou popular o filho, que até então mantinha uma carreira política discreta.

Ricardo, que havia obtido só 5% dos votos para governador da Província de Buenos Aires, subitamente se transformou em herdeiro das práticas de conciliação do pai. Chegou a alcançar, segundo várias pesquisas, o melhor índice de imagem positiva entre todos os políticos do país. "Isso aconteceu logo após a morte de Alfonsín, e nem um minuto antes", disse o sociólogo Manuel Mora y Araújo, reitor da Universidad Torcuato Di Tella.

"Ricardo tem valores próprios e uma profunda formação, mas eu votaria nele porque Alfonsín era o político mais honesto que tinha este país", disse a aposentada Edda Poggio, 72 anos, após um comício do deputado em Saavedra, um tranquilo bairro de classe média na zona norte de Buenos Aires. Uma kombi com quatro alto-falantes e um púlpito improvisado formavam a única estrutura para o discurso a cerca de 300 vizinhos. Mas, apesar da precariedade, o comício numa rua simples e em frente a uma oficina mecânica era um momento especial para Ricardo. No mesmo lugar, 28 anos antes, Alfonsín fez um longo discurso que pavimentou sua campanha à Casa Rosada.

Alfonsín, o filho, reconhece os efeitos que a morte do ex-presidente teve sobre a sua imagem pública. Mas insiste em que esse não será o fator decisivo para atrair eleitores, assim como relativiza o impacto positivo da morte de Néstor Kirchner sobre a popularidade de sua viúva Cristina. "As pessoas, quando votarem daqui a quase um ano, vão fazê-lo em função de outras considerações. Será um voto de reflexão. Eu não subestimo o povo", afirmou Alfonsín ao Valor.

Sua relação cordial com os Kirchner, reforçada após a decisão do casal de inaugurar um busto do pai no salão de ex-presidentes da Casa Rosada, não o afasta das críticas. "O governo se irrita quando dizemos que a Argentina não tem aproveitado uma oportunidade extraordinária que o mundo nos brinda. Responde que crescemos a taxas chinesas, mas não entende o que nós realmente queremos", disse Alfonsín. "É certo que tem havido uma expansão espetacular, fruto de termos de intercâmbio tão favoráveis à América Latina e à Argentina, em particular. Mas a educação, a saúde, a segurança, o trabalho com carteira assinada não melhoraram. A pobreza não diminuiu como era necessária, a economia não se diversificou, temos problemas na área energética, não atraímos novos investimentos. Enfim, não conseguimos transformar crescimento em desenvolvimento."

Alfonsín, advogado de formação, é um leitor ávido de ciência política e tem se trancado em casa - prejudicando inclusive sua exposição na mídia - para ler relatórios sobre macroeconomia, uma área com a qual tem pouca afinidade. Aprecia as lições do ex-ministro brasileiro Mangabeira Unger, com quem conversou algumas vezes, e tem uma ligação bastante afetiva com toda a família Sarney.

Há seis anos, perdeu a menor dos quatro filhos, Amparo, em um acidente banal. Então com 15 anos, ela bateu no vidro de uma porta do colégio, que se desprendeu e caiu sobre uma artéria de sua perna, causando hemorragia fatal. Quando chegou ao hospital, Alfonsín se desesperou e pediu um cigarro, retornando ao velho vício que havia podido abandonar. Hoje, usa chicletes à base de nicotina para tentar vencê-lo outra vez.

O caminho de Alfonsín, no entanto, ainda é bastante longo e depende de vitórias contra adversários do próprio partido. A legislação eleitoral mudou no ano passado e prevê eleições internas dos partidos, em agosto, dois meses antes da votação geral. O vice-presidente Julio Cobos, que contrariou a UCR e se aliou ao casal Kirchner em 2007, tornou-se o provável candidato da legenda após romper com o governo. Acumulando o cargo de presidente do Senado, Cobos deu o voto de desempate contra o projeto de lei que aumentava os impostos às exportações agrícolas. Em meio à pior crise política do governo de Cristina, em 2008, isso lhe garantiu popularidade entre os opositores, mas o efeito foi desaparecendo.

Cobos se aproveitou, durante dois anos, do fato de ter sido o alvo preferencial dos discursos de Néstor e Cristina Kirchner contra a oposição. Até outubro, isso lhe rendia boa imagem com boa parte da população. A partir da morte de Kirchner, com a onda de popularidade a favor de Cristina, produziu-se o efeito oposto. Apesar do recolhimento a que se submeteu, nas últimas semanas, Cobos ainda tem a intenção de ser candidato.

Para o sociológo Mora y Araújo, convém à UCR apressar a escolha de um nome e unificar-se para a campanha, embora uma decisão em breve também implique o risco de desgaste. Já o consultor político Carlos Fara destaca as diferenças entre o eleitorado de um e de outro. Cobos, de acordo com ele, tem mais força entre eleitores independentes, de 30 a 44 anos e de classe média baixa. Alfonsín é mais popular entre eleitores mais velhos, filiados à UCR e de classe média ou média alta.

Longe de uma definição, o partido está tão dividido que sobrou espaço até para o senador Ernesto Sanz, presidente da legenda, posicionar-se sutilmente como terceira via para um eventual impasse, descrevendo assim sua situação: "Vesti o short de banho e estou na beira da piscina. Hoje ela não tem água. Mas, se amanhã tiver, veremos".