Título: Não há atalhos para a estabilidade de preços
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Fonte: Valor Econômico, 03/12/2010, Opinião, p. A14
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, tem sido pródigo em levantar polêmicas desde que foi confirmado na equipe do futuro governo da presidente eleita Dilma Rousseff. Uma das mais incandescentes nasceu da proposta do ministro de estudar a criação de um novo índice de inflação, do qual serão expurgados os preços dos alimentos e dos combustíveis, para balizar o regime de meta de inflação, que atualmente segue o IPCA, calculado pelo IBGE. Mantega também deseja que o novo índice corrija contratos hoje indexados ao IGP-DI, apurado pela Fundação Getúlio Vargas.
O ministro justificou que, impulsionados por fatores climáticos e choques externos, alimentos e combustíveis têm puxado o índice de inflação e freado a queda dos juros. Sem esses preços, o novo índice seria menos volátil e abriria espaço para o recuo das taxas.
A proposta suscitou as mais variadas reações.
Adotar um índice que leve em conta apenas o núcleo da inflação, o "core inflation", não é em si uma má ideia. Vários países usam o "core inflation" e o exemplo mais lembrado é o dos Estados Unidos. Coreia do Sul, Noruega e Tailândia adotaram o sistema de metas de inflação e têm como alvo o núcleo do índice . Já as críticas ao IGP-DI são antigas, pela forte influência do câmbio.
Mesmo especialistas favoráveis à medida afirmam que ela precisa de aperfeiçoamentos. Os combustíveis, por exemplo, têm apresentado grande regularidade de preços ao longo dos anos e, portanto, não explicam a volatilidade da inflação, lembrou o professor da USP, Heron do Carmo. Já alimentos in natura e preços administrados, como tarifas de transporte municipal, oscilam muito ao sabor das chuvas, secas e eleições.
As críticas predominaram, porém. A suspeita de que a proposta encubra a manipulação do índice é um dos motivos, e foi apontada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em cujo mandato o sistema de metas de inflação foi adotado pelo Brasil, em 1999. O presidente do Banco Central (BC) na época, Armínio Fraga, considera um "erro social e político" tirar alimentos e combustíveis do índice de inflação, uma vez que "o povo come e anda de ônibus".
O economista-chefe do Santander, Alexandre Schwartsman, levantou um ponto intrigante na coluna de ontem no Valor: desde 2004, o IPCA sem alimentos e combustíveis ficou acima do IPCA "cheio" em 70% das vezes.
A proposta de Mantega surge, para seu demérito, exatamente em um momento em que os preços dos alimentos estão comandando uma vigorosa arrancada da inflação, que deve fechar o ano perto de 6%, além do centro da meta, que é de 4,5%.
Contribui para alimentar a suspeita de manipulação do índice o fato de o ministro Mantega ter se comprometido com a promessa da presidente eleita de reduzir o juro real para 2% ao ano e cortar a dívida líquida do setor público para 30% até o fim do seu mandato. As recentes manobras para melhorar os resultados das contas públicas à custa de antecipações de dividendos e da futura receita do pré-sal também não ajudam em nada.
O sistema de metas de inflação disseminou-se a partir da década de 90 quando vários países que usavam a âncora cambial para segurar os preços deram-se mal, inclusive o Brasil. O primeiro país a colocá-lo em prática foi a Nova Zelândia, em 1990; atualmente são 26. Estados Unidos, União Europeia, Suíça e Japão adotam alguns dos seus componentes , mas não a meta de inflação.
O índice de inflação usado como meta varia conforme o país e pode mudar também ao longo do tempo - não há uma regra. O alvo em geral é um índice de preços ao consumidor, do qual pode-se excluir alguns componentes. A recente alta das commodities tem aberto esse debate em várias partes do mundo.
Importante também é discutir o horizonte de tempo em que a meta deve ser cumprida, que não necessariamente é o ano-calendário, como no Brasil. Essa definição deve levar em conta o tempo em que medidas como elevação de juros ou inibição do crédito fazem efeito. Já se admite prazos de até dois a três anos.
O professor de Columbia Frederic S. Mishkin ensina que o regime de meta de inflação depende também da responsabilidade do banco central em atingir a meta, do comprometimento do governo com a estabilidade de preços acima de outros objetivos e da total transparência da estratégia de política monetária, que deve ser comunicada ao público.
Pelo que se depreende de Mishkin, a busca da estabilidade de preços vai bem além do índice de inflação a ser escolhido.