Título: Brasil e África: outro horizonte
Autor: Barbosa, Alexandre de Freitas
Fonte: Valor Econômico, 07/12/2010, Opinião, p. A16

Esse é o título - escolhido por Guimarães Rosa - da obra-prima escrita pelo historiador José Honório Rodrigues. Sua primeira edição é de 1961, tendo-a revisto Jose Honório para a segunda edição, de 1964. A terceira e última, de 1980, já daria conta das relações do Brasil com os novos países africanos, libertos do jugo salazarista.

O livro de José Honório é uma preciosidade sob vários aspectos. Em sua primeira parte, o autor empreende cuidadosa sistematização sobre a presença do africano no Brasil, para depois debruçar-se sobre nossas relações externas com a África, desde a independência até o final da década de 70 do século XX.

O Brasil seria alijado da África pela Inglaterra em meados do século XIX. Essa potência almejava, com o fim do tráfico, não apenas favorecer suas colônias, mas também deslocar o Brasil de seu comércio vultoso com o continente.

Conta-nos José Honório que se a África fosse para nossa elite branca dos tempos coloniais o reservatório de "um povo bárbaro e pagão", condenado ao trabalho, depois do tráfico, ela ficaria no nosso inconsciente de país independente como uma "unidade geográfica e humana tão longínqua e afastada quanto os polos".

Portanto, durante mais de um século, do fim do tráfico até 1960, o Brasil ficaria alheio ao que se passava na África, regionalizando a sua política externa e mantendo-se sempre dependente dos desígnios das potências ocidentais. Mesmo quando o país volta a ter uma política externa mais autônoma, esta se vê manchada pela influência nefasta da nossa relação com Portugal, o que só mudaria a partir de 1975, com o reconhecimento imediato da independência de Angola.

Por meio dessa relação de distanciamento com relação à África, negava-se não apenas o passado colonial, mas também uma das bases da formação do povo brasileiro. O "complexo de caiação" de nossas elites teria se fundado no desprezo e vergonha pelos alicerces sociais da nação. Daí o caráter subordinado da nossa política externa.

O historiador José Honório mostra-nos como Jânio Quadros e seu ministro Afonso Arinos processariam uma verdadeira reviravolta nas nossas relações com a África. Essa política externa independente seria continuada por João Goulart e San Tiago Dantas, para encontrar novamente seu rumo com Geisel e Azeredo da Silveira.

Fundava-se uma nova tradição de política externa com a descoberta da fronteira que temos do outro lado do Atlântico, fronteira econômica e cultural, forjada pela "unidade do mar, em cujas praias nos irmanamos". O Brasil passaria a se assumir enquanto "nação continental que começa a pensar intercontinentalmente", sem menosprezo pelo regionalismo hemisférico. Essa política faria ainda mais sentido, segundo José Honório, já que o mundo caminhava para o "fim do europeísmo". Não custa lembrar que a última edição da obra é de 1980!

Do ocidentalismo entreguista e elitista, o Brasil processaria um realinhamento da sua política externa. Sem negar sua filiação ocidental, afirmava-se como aliado, porém não mais como satélite. Emergia de cheio no concerto das nações, colocando-se como representante da periferia e arvorando-se a atuar como elo entre o mundo afro-asiático e as grandes potências ocidentais.

Apesar das mudanças de orientação da política externa, nosso historiador ressentia-se da ausência de uma política externa africana por parte da diplomacia brasileira. O que tivemos fora apenas "um impulso inicial, um apaixonado interesse pela África", orquestrado por servidores públicos, além de um punhado de homens de negócios e algumas personalidades do mundo cultural.

Isso talvez explique o retrocesso que viria em seguida. Durante os anos 90, obcecado pelo ufanismo liberal pós-Guerra Fria, o Brasil deu as costas não apenas à África, mas a todo aquele ensaio de política externa soberana.

Nesse sentido, a primeira década do século XXI parece inaugurar o reencontro do Brasil com uma tradição de política externa, desagradando às "classes conservadoras", cujos aliados em alguns veículos da grande imprensa, tal como nos tempos de José Honório, "iniciaram uma das mais vigorosas campanhas de que há notícia no Brasil". O historiador, ao flagrar o destempero das elites do seu tempo, jamais poderia imaginar que a história se repetiria.

Obviamente que o nosso cenário é bastante diverso. Vivemos no mundo da ascensão chinesa, da crise financeira abalando os países desenvolvidos, e dando novo gás a países como Brasil e Índia; num mundo que tem fome de commodities e, assim, recoloca a África no mapa da economia global, ainda que de forma subordinada, e muitas vezes perversa. Tudo, porém, parece indicar que os anseios por uma política externa brasileira pautada na crescente intercontinentalidade encontram um ambiente ainda mais propício.

O governo Lula não partiu do nada. Soube aproveitar um novo contexto internacional e continuar uma tradição da diplomacia brasileira. Deu um passo à frente. Abriu novas embaixadas, fez crescer os fluxos de comércio, apoiou novos investimentos e ampliou os espaços de cooperação técnica e cultural. Reconheceu a dívida que o Brasil tem com o continente africano, de onde provém metade da sua população, e acenou para um "outro horizonte".

Apesar dessa nova reviravolta, algo me diz que o mestre da história da política externa do Brasil, relutaria em afirmar, de maneira contundente, que possuímos "uma política africana propriamente dita".

Embaixadas e viagens com pompa e circunstância, a criação de representações de nossas instituições públicas e de novos instrumentos de financiamento para o continente africano; além do apoio muitas vezes incondicional do governo - sem exigências de cláusulas sociais e ambientais - ao estabelecimento de grandes conglomerados privados, as novas multinacionais brasileiras, que José Honório não conhecia; isto por si só não constitui uma política africana.

O que quer o Brasil com a África? Mais mercados e mais votos nas Nações Unidas? Em que nos diferenciamos das potências ditas imperialistas? Queremos ocupar um novo papel no cenário internacional às expensas da África? Ou pretendemos nos associar, de maneira soberana, com os governos e sociedades desse continente tão diversificado e com tanto potencial? Será possível que recriemos sobre o túmulo das carreiras bilaterais que fundaram o trato dos viventes um intercâmbio de bens, serviços, tecnologias, produções culturais e projetos alternativos de desenvolvimento, que flua nos dois sentidos? Se isto é o que queremos, precisamos ousar muito mais.

Ao lançar essas questões, faço uma espécie de tributo ao mestre José Honório, professor, historiador e nacionalista que ao pensar a África propunha um tipo diferente de Brasil, sem complexo de caiação, a política externa se unindo à realidade de uma nação deliciosamente mestiça.

Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP).