Título: O Haiti é aqui, mas o Rio é diferente
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 10/12/2010, A mesa com valor, p. 16

A mais recente unanimidade nacional discorda de todos os brasileiros. -É impossível transplantar para o resto do Brasil a experiência do Rio. - Por quê?

- Porque a questão de segurança do Rio não se iguala a de nenhuma outra cidade.

Já antes da ocupação militar do Complexo do Alemão, desgostava ao secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, interromper o trabalho para almoçar fora, mesmo em restaurantes das proximidades. Nas atuais circunstâncias, seria impossível uma refeição tranquila sob o cerco de aplausos e abraços. Por isso, o secretário e os auxiliares mais próximos fazem uma vaquinha - "uns duzentinhos por mês cada um" - e almoçam na secretaria, no quarto andar do velho prédio que serviu de sede à Estrada de Ferro Central do Brasil. Foi ali que, numa quarta-feira, anterior à tomada do Alemão, Beltrame recebeu a reportagem para este "À Mesa com o Valor".

Comida caseira, escondidinho de carne seca, filé de peixe com molho de camarão, arroz, feijão, alface, tomate. Para beber, água mineral. A cozinheira, anônima, pertence aos quadros da secretaria e mereceria citação em boletim pelo capricho no cozimento e no tempero. O almoço é servido em uma mesa de reuniões para oito pessoas, no salão ao lado do gabinete do secretário.

"A ideia nasceu nesta mesa", diz Beltrame, referindo-se às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), já instaladas em 14 regiões do Rio anteriormente dominadas pelo tráfico.

Do gabinete do secretário se vê a mais central de todas as UPPs, a do morro da Providência. Foi de onde se irradiou para o país a palavra "favela" com o significado de aglomeração de barracos de madeira, zinco ou papelão, em condições de habitabilidade desumanas. Os barracos agora costumam ser de alvenaria, cobertos por uma laje, ponto de observação e fuzilaria do narcotráfico. Soldados cariocas conheceram a favela - árvore da caatinga com espinhos que queimam como urtiga - ao integrar as tropas federais que foram combater Antônio Conselheiro em Canudos (1896/97). No retorno, prometeram-lhes moradia numa elevação sobre a zona portuária, entre os bairros de Santo Cristo e Gamboa. Na vã espera, instalaram-se no morro em situação tão precária quanto à testemunhada no Nordeste, e o local passou a ser conhecido como Morro da Favela. Mas isso foi na época de Machado de Assis, nascido na Gamboa e que fez dela cenário de algumas de suas histórias.

Muito mais recentemente, em 2008, sem cronista tão ilustre para explicar o inexplicável, uma patrulha do Exército prendeu no Providência três rapazes da facção criminosa Amigos dos Amigos (ADA) e, em lugar de levá-los à polícia, entregou-os ao bando rival, o Comando Vermelho (CV). Os rapazes foram trucidados. Eram tempos em que polícia e Forças Armadas não se entendiam. O Providência agora está em paz, e a UPP vista do gabinete do secretário é a sétima entre as 14.

Beltrame conhece a história da violência no Rio: "Há gente nas favelas que pertence à terceira, quarta geração de criminosos".

- Eles não morrem aos 20, 22 anos?...

- Mas são pais aos 15. Os que são presos, os que morrem, aos 19, sempre têm filhos.

Do estudo da história e da observação da dura atualidade surgiram as UPPs, ideia gestada em reuniões do secretário com a atual cúpula da Polícia Militar e da Polícia Civil, profissionais de sua confiança e insuspeitos de pertencer à banda podre dessas corporações.

"É simplista dizer que a ideia é nossa. Sabemos todos que moram no Rio que é isso que tinha que ser feito. O Rio é como um tabuleiro de xadrez, com os quadradinhos aqueles, brancos e marrons. Os marrons são as áreas ocupadas por criminosos comprovadamente muito bem armados. Nossa tarefa é deixar tudo branco. E como faço isso? Só colocando o Estado lá dentro, como detentor do poder."

O planejado era acabar com as 40 manchas desse tabuleiro até 2014. A provocação incendiária dos traficantes, que não esperavam reação estadual e federal com tal poder de fogo, permitiu a mudança do cronograma: prevista para depois do Carnaval, a retomada da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão pôde ser antecipada. Rocinha/Vidigal e o Complexo da Maré (16 comunidades dominadas por dois tipos de bandidos - metade tráfico, metade milícias), são as novas grandes manchas a remover, em data não revelada.

"Tudo será feito sem precipitação, levamos quase 18 meses planejando as UPPs. Lá na minha terra tem um ditado: mingau quente tu comes pela beirada".

Gaúcho, filho de funcionário do Banco do Brasil que morreu de câncer na década de 90, Beltrame fez curso fundamental e médio na escola pública Olavo Bilac na cidade em que nasceu, Santa Maria, onde sua mãe era professora. "Morava a seis quilômetros de distância, ia a pé, quebrando o gelo da geada com um sapato de couro fino." Em Santa Maria formou-se em direito na Universidade Federal e, em Porto Alegre, conquistou mais dois diplomas: administração pública e administração de empresas. No Rio, anos depois, fez pós-graduação em segurança estratégica. Entrou para a Polícia Federal aos 23 anos, por concurso, e foi servir em Santa Maria.

Hoje cedido ao governo do Rio, Beltrame conta com quatro delegados, três agentes e uma secretária, requisitados por ele à Polícia Federal. Aos 53, o secretário de Segurança demonstra prazer especial ao falar da instituição policial a que dedicou 30 anos de trabalho, completados em julho. Participou de operações em todo o Rio Grande do Sul e, logo depois, pelo país inteiro. "Mandam a gente para tudo que é lugar, Recife, Pontaporã, São Paulo, interior de São Paulo, Manaus, Rio. Ficava um, dois meses em Santa Maria, e quatro ou cinco fora. Na última vez que vim para o Rio, em 2003, era para ficar três meses. Estou até agora. Só em 2004 fui oficialmente transferido. Conheci a polícia do Rio por dentro, trabalhando na Federal. A gente fez um trabalho no batalhão de Bangu, lá onde 70 PMs foram presos. Esmiuçamos a atividade do Álvaro Lins [Chefe da Polícia Civil no governo de Anthony Garotinho e deputado estadual. Foi preso pela Polícia Federal em 2008, por lavagem de dinheiro, corrupção passiva, formação de quadrilha armada e facilitação ao contrabando. Seu mandato foi cassado].

- A preferência da PF em usar delegados e agentes de fora de sua base é para evitar tráfico de influência, corrupção?

- São duas coisas. Há toda essa preocupação com a corrupção, mas tem também um lado prático. Quem vem de fora fica mais tempo à disposição. Vim para cá com a equipe do Luiz Fernando [Corrêa, atual diretor-geral da PF] para trabalhar nas ligações internacionais do Comando Vermelho. Foi logo depois da prisão do Fernandinho Beira-Mar. Eu morava literalmente na Superintendência da Polícia Federal, tem alojamentos lá. A vantagem é que estava à disposição 18, 20 horas por dia. Já quem mora aqui, por mais honesto e profissional que seja, terá sempre um filho para levar para a escola, a mulher para ir ao cinema, um domingo de folga para tomar sol. Meus colegas continuam nessa vida errante, com naturais problemas de família, separações, essas coisas...

- Isso influiu no fim do seu primeiro casamento?

- Sem dúvida. Quem se gosta tem que estar junto.

Com a primeira mulher Beltrame tem um casal de filhos. O veterinário Mariano, 27, está em Santa Maria. Mariana, 23, estudante de direito, mora com o pai. No Rio, há seis anos, Beltrame voltou a casar-se. Rita Paes, já com dois filhos adotados, e José Mariano conheceram-se num ensaio da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, ele delegado; ela, professora de educação física em duas escolas estaduais. Francisco, filho do casal, tem 11 meses.

"Santa Maria foi um grande centro ferroviário. Pois vim ao Rio para casar-me com uma filha de ferroviários, do subúrbio de Guadalupe. Sabe as vilas de ferroviários, casinhas geminadas à beira dos trilhos? A Rita nasceu numa delas, minha sogra ainda mora lá". Hoje, Rita trabalha na Secretaria de Direitos Humano do Estado (deixou as escolas, pois estavam em áreas onde o crime ainda é a lei).

Beltrame quer afastar o crime armado do morro, não permitir sua volta e não deixar espaço para a implantação de um poder tão ou mais nefasto, o das milícias formadas por policiais, já expulsos ou ainda escudados em distintivo, viaturas e armamento oficiais. Elas expulsam - prioritariamente matam - os traficantes e ocupam seu lugar.

- A polícia subia, trocava tiros e voltava ao asfalto. Pois, decidimos subir o morro e permanecer. Esta é a nossa política de UPPs, uma questão de territorialidade. Num território que não é do Estado, mas de um poder paralelo e armado, tudo que o Estado jogar ali dentro vai ser absorvido pelo crime. É como a floresta amazônica, fazem uma estrada e a mata a engole. Veja os Brizolões. Fizeram essas escolas fantásticas, equipamento público de primeira qualidade, em área dominada.. O que aconteceu? Aos poucos, o crime, tráfico ou milícia, tomou conta, ameaça professoras, aterroriza alunos, usa a escola como depósito de armas e drogas, faz até desova de cadáveres ali. Então, a primeira coisa é debelar as armas, prender, expulsar do morro, causar grande prejuizo aos negócios ilícitos dos criminosos, fragilizá-los. Vá agora ao morro do Borel, onde tem UPP e Cieps (Centros Integrados de Educação Pública, criados no primeiro governo de Leonel Brizola, 1983-87). Fale com a diretora. A escola está funcionando que é uma maravilha. Na Cidade de Deus, depois da UPP, a frequência aos Cieps aumentou 40%. Ocupamos o centro de operações do crime, o espaço está aberto. E que venha o Estado com os serviços públicos, que venha a iniciativa privada que diz que vem, e às vezes não vem. O ex-primeiro ministro da Inglaterra Tony Blair disse que segurança é o primeiro dos direitos. Se é o primeiro, tem um segundo, um terceiro. Então agora que há segurança, dá os direitos restantes. Vai lá no morro, bota médico, escola, hotel, fábrica, restaurante não chama mais Dona Marta de favela. A "cidade partida", de Zuenir Ventura, começa a não existir mais.

- O tráfico domina a comunidade por causa da ausência do Estado?

- Há um certo cinismo nisso. O Estado dizia "não posso colocar médico na Cidade de Deus porque o tráfico não deixa, se ponho escola vão matar o professor". Era um problema a menos para o governante. O morro Dona Marta chega até o muro da Prefeitura. O prefeito anterior [César Maia], em vez de subir o morro, blindou as janelas da Prefeitura.

- E com as UPPs teremos paz?

- Não é tão fácil assim, a polícia entra hoje e amanhã temos paz. Ela se constrói, né? Quanto mais antiga a UPP, mais sedimentada ela está. A população não acreditava na polícia e tinha suas razões. E vice-versa, porque a polícia também não confiava na população. Só podemos mudar esse estado latente de guerra com atitude, e atitude a gente faz deste jeito: entra uma força especial forte, fica lá, instalada. Depois vem a UPP com policiais novos, recém-saídos da academia, sem vícios. São a polícia comunitária, polícia de proximidade.

- Por que essa experiência não pode ser transplantada para outras cidades?

Calmo, professoral, Beltrame tenta explicar.

- É como comparar o Rio com Medelín, com Bogotá. Estivemos lá, copiamos algumas coisas deles. Mas não dá para um transplante mecânico. É muito diferente. No Rio mesmo, uma UPP é diferente da outra, até na topografia. É quase tudo morro, onde a polícia não pode usar carro. E há o Jardim Batan, em Realengo, terreno plano onde o policial anda de bicicleta. [No Batan, a operação foi contra a milícia. A casa em que jornalistas de "O Dia" foram torturados e mantidos reféns, em 2008, é hoje a sede da UPP nº3. O Zero Um, chefe da milícia e policial civil, está preso]. E há o problema dos grupos criminosos que se odeiam. São o Comando Vermelho, que é o mais violento; a ADA, que busca mais a corrupção de policiais, e o hoje enfraquecido Terceiro Comando (TC). Sua origem é a Falange Vermelha, se dividiram e lotearam os morros, transformaram-nos em território seu.

- Não foi um loteamento consensual.?

- Loteamento a bala. Eles se matam por esses territórios. Aliás, se armaram não especificamente para enfrentar a polícia, mas para defender seu território e tomar o ponto de venda de droga do inimigo. É aí que surge o fuzil como arma do crime. E também aparece a ligação com policiais corruptos, de cuja proteção precisavam para derrotar o concorrente. Nesse ponto, o jogo do bicho era mais bem organizado do que o tráfico das favelas do Rio. Não há, no Rio, um Senhor da Droga, um Senhor das Armas. Em São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC) tem praticamente o monopólio do tráfico e a situação é diferente, não há território em poder dos criminosos. Em outras capitais também é diferente. O que o Rio está ensinando é que é possível, sim, enfrentar o crime com energia e respeito aos direitos humanos. Essa determinação é que pode se expandir pelo país.

- Como o senhor virou secretário de Segurança? Conhecia o governador?

- Nem mais gordo nem mais magro.

Eleito governador, Sérgio Cabral queria um secretário de Segurança vindo da Polícia Federal. Diz-se nos bastidores que o primeiro cogitado foi um delegado que acabaria preso logo depois pela própria Polícia Federal. Mas alguém, segundo Beltrame, recomendou: "Já que tem que ser da Federal, há um maluco que até mora lá dentro". Beltrame foi chamado para uma entrevista. "O que acha da polícia do Rio?" Respondeu: "A PM é muito ruim e a Civil tem muitos problemas."

"Fui falando, conhecia bem a polícia, não ia ficar fantasiando. Era 13 de novembro de 2006. No dia seguinte viajei para Santa Maria. Aliás, foi a última vez que vi minha mãe viva. Dia 15, feriado, o governador me liga. "Você aceita?" "Olha, tenho medo de lhe trazer problemas, não estou acostumado com jogo político". E ele: "Vai ser como você quer". Aceitei, o cavalo passou encilhado... "Então preciso de ti amanhã às dez horas, vou te apresentar à imprensa". Tive de alugar um carro até Porto Alegre para pegar o avião."

- E é como senhor quer?

- Ele deixa a gente trabalhar. Em quatro anos, o governador nunca pediu a promoção de ninguém, nem indicou comandante de batalhão. Mas estamos em contato permanente. Tudo que é importante informo, consulto.

Com a ocupação do Alemão cessaram as críticas de que a atuação da Secretaria se concentra na Zona Sul, a parte rica e menos perigosa do Rio. Exagero, aliás, pois só as UPPs da ex-perigosa Cidade de Deus e da ex-miliciana Batan, na Zona Norte, atendem a 100 mil pessoas, mais do que as seis do Centro ou da Zona Sul. A pergunta é se elas chegarão ao interior.

- O Rio tem 92 municípios e 16 milhões de habitantes, mas 11 milhões estão num lugar só: aqui na região metropolitana. Onde tenho que colocar meus recursos, considerando que quase não tenho recursos?

À sobremesa, Beltrame serviu-se de pudim de leite condensado e morangos com creme. O repórter acompanhou.