Título: Rotina torturante
Autor:
Fonte: Correio Braziliense, 23/07/2010, Ciência, p. 20

Nem todos sabem,mas a Constituição Federal brasileira veda a submissão de animais à crueldade.

Inspirada neste mandamento, nossa lei ambiental criminalizou a prática de abusos e maus-tratos aos animais, incluindo-se a vivissecção.

Apesar disso, os animais continuam padecendo nos laboratórios e nos centros de pesquisa.

Enquanto na Europa a tendência é abolir o uso de animais nas atividades didático-científicas, aqui se editou uma lei que incentiva a experimentaçãoa Lei Arouca (Lei Federal nº 11.794/08)e que, a pretexto de contribuir para o progresso científico, acaba legitimando a crueldade.

Acreditar que o conhecimento humano não avançaria sem os experimentos em animais é ingenuidade.

O problema é que se pensa e se age sempre em termos invasivos, como se os corpos dos animais fossemmesmoas máquinas inanimadas proclamadas há quase 400 anos por Descartes. A metodologia científica, ao eleger o animal como modelo experimental do homem, torna-se equivocada, cruel e injusta. Se as pessoas vissem de perto o que acontece com as cobaias ou as atrocidades perpetradas nelas em nome da deusa ciência,em que a anestesia serve como mero paliativo à nossa consciência moral, certamente deixariam de adquirir produtos testados em animais.

A metodologia científica oficial desvia o verdadeiro foco das pesquisas para eleger o animal, equivocadamente, como modelo de investigação humana. E quase ninguém se preocupa em descobrir as causas das doenças, mas apenas com suas consequências.

Não se previne o mal, apenas se remedia. A abolição da experimentação animal, portanto, permitiria o advento de outras possibilidades de pesquisas científicas, provavelmente mais eficientes que as atuais.Umbomcomeço seria a implementação dos métodos substitutivos já existentes e preconizados pela lei ambiental. Esse é o desafio ético. Enquanto os pesquisadores permanecerem arraigados à mentalidade antropocêntrica, ritualizando valores em vez de submetê-los a crítica, pouca coisa mudará.

Essa mudança de paradigma precisa ocorrer com urgência, para acabar com a rotina torturante que recai sobre os animais.

A perpetuação do modelo experimental com animais limita a capacidade humana de buscar metodologias éticas na pesquisa, lembrando-se que a ciência não é neutra e tampouco dona da verdade. Os animais, enfim, merecem ser respeitados em seu valor inerente, e não apenas instrumental, porque eles também são seres sensíveis, com interesses e direitos assegurados pela lei.

Laerte Fernando Levai, promotor de Justiça no Estado de SãoPaulo e colunista da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi)