Título: Sapato com sotaque brasileiro revitaliza polo calçadista argentino
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 16/12/2010, Especial, p. A16

Indústria: Medidas protecionistas da Argentina estimularam Vulcabras a investir no país

A 550 km ao sul de Buenos Aires, o município de Coronel Suárez é um dos polos calçadistas mais tradicionais da Argentina e chorou quando sua maior indústria fechou as portas, em 2003. A Gatic, que protagonizava um duelo do calçado nacional contra a Alpargatas, não suportou os efeitos do endividamento assumido com o dólar barato da década anterior para comprar maquinário e tentar resistir - inutilmente - à invasão dos sapatos e tênis importados.

De quase dois mil empregados, nos melhores tempos, a fábrica passou a receber a visita de apenas uma pessoa. "Eu vinha todos os dias para cortar a grama dos jardins, espantar as pombas de dentro dos galpões e fazer o inventário das máquinas, mas ia para casa usar o computador porque até a luz havia sido cortada", afirma Héctor Adámoli, o diretor industrial à época.

Sob nova direção, hoje o cenário é bem diferente. A fábrica emprega 4,2 mil trabalhadores e funciona inclusive de madrugada. O estacionamento para funcionários está cheio de motos e muitos compraram carro. A prefeitura estuda uma solução viária para desafogar o trânsito das imediações - uma novidade para este pequeno município interiorano - nas trocas de turno.

A pequena revolução em Coronel Suárez tem sotaque brasileiro. Em 2007, entusiasmada com a alta das vendas à Argentina, mas enfrentando dores de cabeça com o uso crescente de licenças não automáticas para atrasar suas exportações, a Vulcabras investiu US$ 27 milhões na compra da ex-Gatic.

"A região respirava uma cultura calçadista e a fábrica tinha ótimas condições de retomar a produção", diz Marco Antônio Sá Martins, presidente da Vulcabras na Argentina. Era também a melhor forma de driblar medidas protecionistas. "As licenças não automáticas passaram a fluir com mais rapidez quando o governo argentino viu que estávamos investindo uma soma importante na recuperação da indústria local", emenda Martins.

A produção diária, que girava em torno de 12 mil pares de calçados por dia no início de 2010, já subiu para 16,5 mil pares no fim do ano. Aumenta se for incluída a confecção de sandálias Ipanema, que a Vulcabras terceiriza para a Grendene, do mesmo grupo familiar. Já foram investidos mais de US$ 60 milhões na fábrica. Hoje ela fatura 720 milhões pesos (US$ 180 milhões), um aumento de 47% sobre o ano passado, e emprega quase dez vezes mais do que em 2007.

Numa cidade com população estimada em 38 mil habitantes, calcula-se que uma em cada três famílias tem um ou mais integrantes trabalhando na Vulcabras. A empresa começa a sentir falta de mão de obra especializada. O vigor da indústria já levou a presidente Cristina Kirchner a visitar duas vezes suas instalações. "Coronel Suárez é um município com desemprego zero", afirmou ao Valor o governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, aliado de Cristina.

A prosperidade chegou ao comércio local. "Aqui só não trabalha quem não quer", afirma Pedro Graff, dono de uma concessionária da Citroën que viu seus negócios crescerem. Boa parte da renda de Coronel Suárez ainda é gerada pelas plantações de soja e criação de gado nos arredores. "Mas o que a fábrica fez foi blindar a nossa economia contra as volatilidades do campo", acrescenta o empresário.

Novos supermercados e redes varejistas se instalaram na cidade. Na loja de eletrodomésticos Merlino, o gerente Jorge Landoburu estima que pelo menos 30% de sua clientela é de trabalhadores da Vulcabras. "O fim de semana seguinte ao pagamento é nosso melhor período de vendas", comenta.

O crescimento da fábrica mudou até mesmo os hábitos de consumo dos funcionários. "Basta dizer que trabalhamos na Vulcabras que nos dão crédito", afirma Juan Carlos Wagner, 50, especialista em corte de couro. Em 1978, ele teve ali seu primeiro emprego, que durou até a quebra da Gatic. Voltou quando a indústria foi comprada pelos brasileiros. "Trabalhei 27 anos na empresa e me mandaram embora de um dia para outro, sem indenização. Hoje, vivemos num ambiente de estabilidade."

O único funcionário brasileiro na Argentina é o próprio presidente, que fica no escritório em Buenos Aires. Desde meados do ano, até a produção é controlada por um argentino, o mesmo antigo diretor que visitava a fábrica para cortar a grama e espantar as pombas. Os resultados têm sido comemorados. A Reebok, cuja licença exclusiva no Cone Sul é detida pela Vulcabras, estava na 17° lugar posição do mercado local de calçados esportivos e agora disputa a vice-liderança, perdendo apenas para a Nike. Quiosques com sandálias Ipanema estão em shopping centers. E a marca Olympikus, de propriedade da empresa brasileira, triplicou as vendas em dois anos - para 1,2 milhão de pares em 2010.

Com uma política de marketing agressiva, a Vulcabras patrocina três times de futebol: o Lanús, o Racing e o Argentinos Juniors.