Título: A travessia latino-americana
Autor: Silva, José Graziano da
Fonte: Valor Econômico, 17/12/2010, Opiniao, p. A15

Quais são as linhas de passagem entre as tensões do presente e as possibilidades do futuro na América Latina e Caribe após a maior crise da economia mundial desde 1929?

Uma primeira e auspiciosa constatação mostra que a região sai dessa crise em situação mais favorável do que emergiu em episódios anteriores. Não há uma única explicação para isso, mas o ciclo de alta das commodities encontra-se na origem de um novo padrão exportador.

Entre 2006 e 2008, os preços de algumas matérias-primas praticamente dobraram no mercado mundial. Foi o ápice de um processo que gerou especulação, fome e pobreza em vários pontos do globo. Mas alteraria sensivelmente a relação de troca da economia latino-americana, responsável por quase metade da safra mundial de soja; 40% da produção de cobre e quase 10% da oferta mundial de petróleo cru.

O saldo em conta corrente e a relação entre a dívida externa e as exportações, bem como o acumulado de reservas internacionais - cujo volume quintuplicou nos países em desenvolvimento nos últimos anos - registrariam transformações inéditas nessa travessia. O destaque adquirido pelos Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) ofuscou a amplitude dessa mutação, em que oito de cada dez economias em desenvolvimento cresceriam mais que o mercado americano.

A singularidade regional é que muitos governos souberam aproveitar a margem de manobra extra para inaugurar um ciclo de crescimento comprometido com a redução de um passivo social mundialmente imbatível e um crescimento econômico mais inclusivo.

A inédita convergência de menor vulnerabilidade e maior inclusão gerou frutos menos perecíveis do que supunha o diagnóstico da febre passageira, atrelada ao surto altista das matérias-primas. Diferentemente dos ciclos exportadores anteriores, o atual abarcou múltiplos produtos e estimulou também os demais setores da economia, - superando o velho antagonismo entre agricultura e indústria - o que permitiu capilarizar o emprego e a renda em diferentes cadeias produtivas.

Quando estourou a bolha financeira, em setembro de 2008, essa nova dinâmica já se desdobrara em dois movimentos interligados: o florescimento do mercado de consumo local e uma incipiente, mas sensível, retomada do investimento público e privado.

O Brasil, melhor referência desse novo ciclo regional, não é um caso único. Terceira menor economia da região, o Paraguai, por exemplo, deve liderar o crescimento latino-americano em 2010, empurrado pela construção civil e as exportações agrícolas.

A Cepal calcula que o gasto com políticas sociais na América Latina dobrou de US$ 445 per capita em 1990, para US$ 880 em 2008.

A mesma resiliência é observada na ponta dos avanços sociais, como indica o Panorama Social da América Latina 2010, publicado pela Cepal. O estudo mostra que apesar da contração global, os índices de pobreza mantiveram-se praticamente inalterados em 2009 na América Latina. Porém, num universo em que a exclusão abarca 33% da população, estabilidade ainda quer dizer urgência.

Ela atinge seu grau mais elevado no contingente de 53,1 milhões de pessoas que estavam submetidas à lógica da fome no fim de 2009, um retrocesso diante dos 47,1 milhões registrados entre 2005-2007. A Food and Agriculture Organization (FAO) projeta pequena redução, menos de 1%, nesse total em 2010 e destaca o sinal auspicioso de um chão de resistência favorável a novos avanços.

Mas a menor porosidade social às turbulências externas não garante automaticamente a retificação das assimetrias seculares ainda existentes. Elas se desdobram entre países, replicam-se no interior deles e se reproduzem no amplo gradiente de uma retomada que oscila de uma expectativa de crescimento do PIB de 10% para o Paraguai e 7,5% para o Brasil este ano, a uma média inferior a 1%, no caso de países do Caribe.

Esses impulsos contraditórios ressaltam a importância das políticas públicas na coordenação de qualquer ciclo econômico. A linha de passagem mais promissora hoje consiste em reforçar os vetores endógenos de expansão que assegurem a margem de autonomia na longa e instável convalescença mundial.

Não se trata de apostar em mais do mesmo. O financiamento externo voltou ao patamar pré-crise na América Latina, mas a liquidez internacional revela-se agora um canal de instabilidade que penaliza o câmbio, a balança comercial e a indústria doméstica, ademais de inibir as trocas intrarregionais.

Ampliar o espaço integrado para além do comércio, de modo a compor interações agrícolas e industriais, é um dos requisitos à continuidade da retomada regional. Outro, fortalecido pela experiência recente, é o aprofundamento de políticas sociais, que resgatem o impulso autonomista mais poderoso ainda adormecido na região: a demanda reprimida de 180 milhões de pessoas, apartadas da cidadania pela fome e a pobreza extrema. Incorporar os pobres ao consumo de massa revelou-se um ótimo negócio, não apenas do ponto de vista econômico, mas também para a estabilidade social e política, como estamos vendo no Brasil.

José Graziano da Silva é representante regional da FAO para AL e Caribe.