Título: A perigosa deterioração da dívida pública federal
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 27/12/2010, Opinião, p. A10

Há um fenômeno na área fiscal que está chamando a atenção dos especialistas. Trata-se da deterioração da dívida pública brasileira, nos últimos anos, resultante da constituição pelo governo federal de passivos muito onerosos e de ativos que rendem pouco. Na raiz desse processo está a acumulação de reservas internacionais vultosas e os crescentes empréstimos do Tesouro Nacional aos bancos públicos, principalmente ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Para adquirir as divisas cambiais, um ativo, o Banco Central (BC) lança títulos no mercado, o que constitui um passivo. As reservas são aplicadas em títulos do Tesouro americano, que, por exemplo, renderam 0,83% em 2009. Já a dívida mobiliária é remunerada com juros hoje iguais ou superiores à taxa Selic (10,75% ao ano). A diferença entre essas duas remunerações eleva o custo da dívida pública.

A mesma coisa acontece com os empréstimos concedidos pelo Tesouro ao BNDES, que superaram R$ 200 bilhões nos últimos dois anos. Os empréstimos são ativos do Tesouro, que por eles recebe remuneração próxima à Taxa de Juro de Longo Prazo (TJLP), que está em 6% ao ano. Para dar os recursos ao BNDES, o Tesouro emite mais títulos e paga juros iguais ou superiores à Selic.

Esse fenômeno foi analisado pelo economista Márcio Garcia, em artigo neste jornal publicado na última quinta-feira, e pelo economista Sérgio Wulff Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em estudo que ganhou o primeiro lugar no XV Prêmio do Tesouro Nacional. Os dois mostraram que, mesmo com a queda da taxa Selic nos últimos anos e da própria dívida, a taxa de juro implícita da dívida líquida se manteve constante.

A razão disso, ensina o economista Márcio Garcia, é que as operações citadas (acumulação de reservas e empréstimos aos bancos públicos) encarecem muito a dívida líquida, pois envolvem trocas de ativos que rendem pouco por passivos muito onerosos.

A conclusão a que se chega, após a leitura dos dois economistas, é a de que a trajetória do endividamento não depende hoje apenas da política fiscal. O economista Sérgio Gobetti destaca que "as projeções de dívida líquida utilizadas na análise de sustentabilidade não serão corretas se não considerarem o impacto do diferencial de juros sobre a estrutura de ativos e passivos e as estratégias monetária, cambial e fiscal por trás dessa estrutura".

A acumulação de reservas mostrou-se acertada, pois permitiu que o Brasil atravessasse a crise financeira internacional de 2008 sem maiores problemas. O governo justifica os empréstimos do Tesouro ao BNDES com o argumento de que é necessário suprir a demanda das empresas por financiamentos de longo prazo para que elas realizem os investimentos.

Sem entrar no mérito das duas iniciativas, a questão que se coloca é sobre a sustentabilidade da manutenção do atual ritmo de acumulação de reservas e de empréstimos do Tesouro aos bancos públicos. "Novas intervenções esterilizadas [para compra de reservas] e novos empréstimos do Tesouro ao BNDES devem ser submetidos à análise de custo-benefício. Entre os custos, além do aumento da dívida bruta, devem ser incluídos o encarecimento da dívida líquida e a deterioração do perfil da dívida mobiliária", sugeriu o professor Márcio Garcia.

Para o economista Sérgio Gobetti, a continuidade da atual política de aquisição de reservas e a ampliação do crédito subsidiado só se mantêm no longo prazo "se forem construídas as condições econômica e institucional para uma queda acentuada da taxa básica de juros e para as demais taxas que remuneram os títulos da dívida pública".

O que os dois economistas deixam claro é que o país precisa promover, de uma vez por todas, o ajuste das contas públicas, pré-condição para a redução das taxas de juros pagas pelo Estado brasileiro. Depois de 16 anos de estabilização da economia, o setor público ainda é deficitário. Somente um ajuste estrutural permitirá que o Brasil tenha juros compatíveis com os padrões internacionais. Enquanto isso não acontecer, toda e qualquer operação de endividamento público terá sempre um custo muito elevado, uma ameaça, portanto, à manutenção da própria estabilidade.